Hamlet em portugués
HAMLET
DRAMA EM CINCO ACTOS
WILLIAM SHAKESPEARE
HAMLET
DRAMA EM CINCO ACTOS
TRADUCÇÃO PORTUGUEZA
SEGUNDA EDIÇÃO
LISBOA
IMPRENSA NACIONAL
1880
INTERLOCUTORES
CLAUDIORei de Dinamarca.
HAMLETFilho do defunto Rei e sobrinho do Rei reinante.
POLONIOCamareiro mór.
HORACIOAmigo de Hamlet.
LAERTEFilho de Polonio.
VOLTIMANDO
CORNELIO
ROSENCRANTZ
GUILDENSTERN
OSRICO
Cortezãos dinamarquezes.
UM OUTRO CORTEZÃO.
UM PADRE.
REINALDOCreado de Polonio.
MARCELLO E BERNARDOOfficiaes.
FRANCISCOSoldado.
UM EMBAIXADOR.
A SOMBRA DO REI HAMLET.
FORTIMBRAZPrincipe de Noruega.
GERTRUDESRainha de Dinamarca, mãe de Hamlet.
OPHELIAFilha de Polonio.
Senhores, damas, officiaes, soldados, actores, padres, coveiros, marinheiros, mensageiros, creados, etc.
A scena passa-se em Elsenor
[7]
ACTO PRIMEIRO
SCENA I
Elsenor, a explanada do castello
FRANCISCO de sentinella, BERNARDO vem encontrar-se com elle
BERNARDO
Quem vem lá? viva quem?
FRANCISCO
Responde tu primeiro, faze alto, deixa-te reconhecer.
BERNARDO
Viva o rei.
FRANCISCO
Bernardo?
BERNARDO
Eu mesmo.
FRANCISCO
És pontual.
BERNARDO
Acaba de dar meia noite; vae descansar, Francisco.
FRANCISCO
Agradeço-te de me teres vindo render; faz um frio glacial, e começava a sentir-me
incommodado.
[8]
BERNARDO
Não houve novidade emquanto estiveste de sentinella?
FRANCISCO
Nem sequer ouvi correr um rato.
BERNARDO
Então boas noites; se vires Horacio e Marcello, que tambem estão de guarda, dize-lhes
que se aviem.
Chegam HORACIO e MARCELLO
FRANCISCO
Creio ouvil-os, façam alto, quem vem lá?
HORACIO
Amigos da patria.
MARCELLO
Subditos do rei de Dinamarca.
FRANCISCO
Santas noites.
MARCELLO
Viva, meu valente soldado, quem te rendeu?
FRANCISCO
Bernardo está agora de sentinella. Boa noite. (Retira-se.)
MARCELLO
Olá, Bernardo?
BERNARDO
Não é Horacio que eu vejo?
HORACIO
Elle mesmo em corpo e alma.
BERNARDO
Bemvindo sejas, Horacio, e tu tambem, amigo Marcello.
MARCELLO
Dize-me, já viste a apparição esta noite?
[9]
BERNARDO
Ainda nada vi.
MARCELLO
Horacio diz que é effeito da minha imaginação, e nega-se a acreditar na visão temerosa,
de que já por duas vezes fomos testemunhas; pedi-lhe portanto que viesse comnosco,
para que se o phantasma de novo apparecer, elle possa testemunhar a verdade do que
afiançâmos e dirigir-lhe a palavra.
HORACIO
Historias, qual apparecer!
BERNARDO
Sentemo-nos um instante, e vamos repetir-te a narração do que temos presenceado duas
noites consecutivas e a que prestas tão pouco credito.
HORACIO
Com todo o gosto, e deixemos fallar Bernardo.
BERNARDO
A noite passada, á hora em que esta estrella que vêem ao poente do polo descreve o seu
giro e vem illuminar esta parte do firmamento, em que ora brilha, no momento em que
na torre soava uma hora, Marcello e eu...
MARCELLO
Silencio, eil-o que apparece.
Apparece a sombra do REI
BERNARDO
Assimilha-se ao defunto rei.
MARCELLO
Tu que estudaste, Horacio, falla-lhe.
BERNARDO
Não é verdade que se parece com o defunto rei? Observa bem, Horacio.
HORACIO
A similhança é espantosa; a surpreza e o terror paralysaram-me.
[10]
BERNARDO
Parece esperar que lhe fallem.
MARCELLO
Falla-lhe, Horacio.
HORACIO
Quem quer que és, que a esta hora da noite usurpas a fórma magestosa e guerreira,
debaixo da qual se mostrava o meu defunto soberano, em nome do céu, falla, ordeno-to
eu!
MARCELLO
Parece descontente.
BERNARDO
Eil-o que se afasta, caminhando lenta e gravemente.
HORACIO
Detem-te, falla, falla, intimo-te a que falles. (A sombra afasta-se.)
MARCELLO
Foi-se sem responder.
BERNARDO
Então, Horacio, que é essa tremura e pallidez; não haverá alguma cousa mais do que um
effeito de imaginação, que dizes agora?
HORACIO
Pelo Deus do céu, não o acreditava sem o testemunho positivo e irrecusavel dos meus
proprios olhos.
MARCELLO
Não se parece com o rei?
HORACIO
Como tu te pareces comtigo mesmo, era a armadura que usava quando combateu o
ambicioso norueguez; tinha aquelle ar ameaçador, no dia em que no seu proprio carro,
atacou, por causa de uma acalorada porfia, o guerreiro polaco, e o prostrou no gêlo para
nunca mais se levantar. É assombroso!
MARCELLO
Assim é que elle já duas vezes passou pelo nosso posto de observação com o seu
caminhar grave e marcial.
[11]
HORACIO
Com que designio, ignoro-o, mas em minha opinião é um presagio para o estado de
alguma grande catastrophe.
MARCELLO
Pois bem, sentemo-nos, e aquelle d'entre vós todos que o souber, diga porque fatigam,
com guardas vigilantes e rigorosas, os subditos d'este reino; para que esta fundição
diaria de canhões de bronze, estas compras de armamentos e munições no estrangeiro;
para que se enchem de operarios os nossos arsenaes maritimos; porque este augmento
de trabalho, que nem os dias santos são respeitados; para que esta actividade de dia e de
noite? O que será? Qual de vós m'o poderá dizer?
HORACIO
Posso eu, ao menos, referir os boatos. Nosso ultimo rei, cuja imagem ainda ha pouco
vimos, foi, segundo dizem, convocado a campo fechado por Fortimbraz de Noruega,
que um cioso orgulho tinha levado a esse acto. N'esse combate o nosso valente Hamlet,
e era justa a sua reputação, matou a Fortimbraz. Ora em virtude de uma declaração
authentica, sanccionada pelas leis da cavallaria, se Fortimbraz succumbisse, todos os
seus estados pertenceriam ao vencedor. Por sua parte o nosso rei tinha empenhado da
mesma fórma a sua palavra; e no caso de elle ser vencido, uma igual porção de territorio
pertenceria a Fortimbraz. Assim, em virtude d'este pacto reciproco, a successão do
vencido pertencia de direito a Hamlet. Comtudo o joven Fortimbraz, ardente e sem
experiencia, reuniu nas fronteiras de Noruega um exercito de aventureiros, promptos e
resolvidos pela soldada aos mais audaciosos commettimentos. O seu projecto, segundo
o nosso governo está informado, é nada menos do que retomar á viva força e de mão
armada esse territorio que seu pae perdeu com a vida: eis-aqui, na minha fraca opinião,
a rasão principal dos preparativos que fazemos, das guardas a que somos obrigados, e
d'esta actividade tumultuosa que se nota em todo o paiz.
BERNARDO
Tambem eu julgo ser esse o motivo; isto explica-nos porque vemos passar diante dos
postos de guarda a sombra do rei, [12] com a sua armadura e com o seu porte
magestoso, d'esse rei que foi e é o causador d'esta guerra.
HORACIO
É um argueiro nos olhos da intelligencia para lhes perturbar a vista. Nos tempos mais
gloriosos e florescentes de Roma, pouco antes da morte do grande Julio, abriram-se os
tumulos, e os mortos, nas suas mortalhas, divagaram pela cidade, soltando gritos
ameaçadores; viram-se estrellas deixar após si rastos luminosos, choveu sangue,
desastrosos signaes appareceram no céu, e o astro humido, sob cuja influencia está o
imperio de Neptuno, eclipsou-se; todos julgavam ser o fim do mundo. Estes mesmos
signaes precursores de acontecimentos terriveis, correios de maus destinos, preludios de
grandes catastrophes, o céu e a terra os fizeram apparecer nos nossos climas, aos olhos
impressionaveis dos nossos compatriotas.
A sombra reapparece
HORACIO continuando
Mas silencio, olhem, eil-o que volta. Vou interpellal-o, embora elle me fulmine. Pára.
Illusão. Se tens o dom da palavra, se pódes articular sons, falla; se ha alguma boa acção
cujo cumprimento te possa alliviar e contribuir para a minha salvação, responde-me: se
és sabedor de alguma desgraça que ameace a tua patria, e que um aviso opportuno possa
desviar... Oh falla! ou se em tua vida confiaste ás entranhas da terra riquezas mal
adquiridas; e a maior parte das vezes é por isso que vós, os espiritos, divagaes depois da
morte, dil-o. (O gallo canta.) Detem-te e falla. Veda-lhe o caminho, Marcello.
MARCELLO
Devo servir-me da minha partazana?
HORACIO
Serve-te se não parar.
BERNARDO
Para cá?
HORACIO
Por acolá. (A sombra afasta-se.)
[13]
MARCELLO
Partiu!que presença magestosa!são desacertadas estas demonstrações violentas! é
invulneravel como o ar, e os nossos golpes não são senão o ridiculo esforço de uma
colera impotente.
BERNARDO
Ia fallar quando cantou o gallo.
HORACIO
Estremeceu como um culpado que uma intimação subita aterra. Ouvi dizer que o gallo,
que é o clarim da aurora, acorda o Deus da manhã com a sua voz sonora e penetrante, e
que a esse signal todos os espiritos errantes no mar, no fogo, na terra ou no ar se
apressam em voltar aos seus respectivos dominios. A prova está no que acabâmos de
presencear.
MARCELLO
O gallo cantou, e elle desappareceu. Algumas pessoas dizem que na vespera do dia em
que se celebra a natividade do Salvador do mundo, o arauto da manhã canta toda a noite
sem interrupção; pretendem então que nenhum espirito ousa saír da sua mansão, que as
noites são salubres, que nenhuma estrella exerce influencia maligna, nenhum maleficio
surte effeito, que nenhuma feiticeira exercita os seus feitiços, tanto esse dia é bento, e
está sob o imperio de uma graça celeste.
HORACIO
Assim o ouvi dizer, e acredito-o. Mas eis que no oriente, acolá no fundo, por detrás dos
outeiros, surge a manhã, vestida de purpura por entre o orvalho. Demos fim á nossa
vigilia, e vamos dar parte ao joven Hamlet do que vimos esta noite; porque, por vida
minha, creio que este espirito, mudo para todos, lhe fallará. Approvam esta confidencia,
que nos impõe o nosso dever e a nossa affeição?
MARCELLO
Vamos sem detença; sei onde o acharemos, e onde lhe poderemos fallar sem
constrangimento. (Retiram-se.)
[14]
SCENA II
Uma sala apparatosa no castello
Entram o REI e a sua comitiva, a RAINHA, HAMLET, POLONIO, LAERTE,
VOLTIMANDO, CORNELIO e CORTEZÃOS
O REI
A morte de Hamlet, nosso amado irmão, ainda é tão recente, que pareceria justo, que
nossos corações estivessem immersos na tristeza e saudade, e que uma nuvem de dor
cobrisse o solo d'este reino; comtudo, a rasão combateu os impulsos da natureza, tanto
que enfreámos a nossa dor, e embora ainda esteja bem viva a recordação, pensâmos
tambem em nós. Portanto, com um prazer incompleto, confundindo os sorrisos com as
lagrimas, a alegria com o luto; unindo o dobrar dos sinos aos canticos nupciaes,
tomámos por esposa aquella que outr'ora era nossa irmã, e fizemol-a compartir
comnosco a corôa d'este bellicoso paiz. N'esta conjunctura ouvimos primeiro os vossos
illustrados conselhos, livremente enunciados. Somos-lhes gratos. Quanto ao joven
Fortimbraz, fazendo seguramente uma fraca idéa do nosso poder, ou imaginando que a
morte de nosso chorado irmão lançasse o estado na dissolução e na anarchia,
embalando-se em chimerica esperança, ousou mandar-nos mensagem após mensagem,
intimando-nos a restituir-lhe o territorio perdido por seu pae, e legalmente adquirido por
nosso valoroso irmão; isto por o que lhe respeita. Fallemos agora de nós e do motivo
d'esta reunião. O motivo é este. Pelas presentes escrevemos ao rei de Noruega, tio do
joven Fortimbraz, que jazendo enfermo n'um leito, mal conhece os projectos de seu
sobrinho, pedindo-lhe que ponha o seu veto á empreza, porque é de entre os seus
subditos que se fazem as levas de soldados e os alistamentos. Encarregámo-vos,
Cornelio e Voltimando, de apresentar as nossas saudações ao idoso monarcha
norueguez, e é nossa vontade, que nas negociações vos conformeis adstrictamente ás
instrucções que junto com a nossa carta recebereis. Adeus; a celeridade do resultado
prove a dedicação dos negociadores.
CORNELIO e VOLTIMANDO
Senhor, a nossa dedicação e obediencia não tem limites.
[15]
O REI continuando
Nem o duvidâmos. Recebam um cordeal adeus. (Cornelio e Voltimando sáem.) Agora,
tu, Laerte, que pretendes? Disseram-nos que nos querias fazer uma supplica? Qual é?
Tu não podes fazer ao monarcha dinamarquez um pedido que não seja rasoavel, e não
recorres a elle em vão. Que poderias desejar, Laerte, a que não estejamos promptos a
annuir, mesmo antes de conhecer a pretensão. A cabeça não é mais sympathica ao
coração, a mão não é mais prompta em servir a bôca do que o throno de Dinamarca é
dedicado a teu pae. Que desejas pois, Laerte?
LAERTE
Meu augusto soberano, a vossa licença e o vosso consentimento, para voltar a França.
Gostosamente vim a Dinamarca para assistir á vossa coroação, mas, cumprido esse
dever, confesso-o, os meus desejos e a minha vontade me chamam a França, e supplico
a vossa magestade que me conceda partir.
O REI
Já alcançaste o consentimento de teu pae? o que diz Polonio?
A RAINHA
Arrancou-me o meu consentimento, tanto me importunou; acabei por ceder, mau grado
meu, aos seus desejos. Supplico-lhe, pois, senhor, que lhe conceda a licença pedida.
O REI
Podes partir quando te aprouver, Laerte; deixo-te a liberdade de dispores do teu tempo e
da tua pessoa. Então, Hamlet, meu primo, meu filho?
HAMLET á parte
Aindaque mui proximos parentes não somos primos.
O REI
Porque essas nuvens que pesam sobre a tua fronte?
HAMLET
Engana-se, senhor, como póde haver nuvens, quando brilha o sol.
A RAINHA
Querido Hamlet, despe essas roupas de dó, e lança um olhar [16] amigavel para o rei de
Dinamarca. Descrava os teus olhos do chão; pareces procurar as pegadas do teu glorioso
pae. Sabes bem que é um destino invariavel; tudo quanto vive ha de morrer, e este
mundo é uma ponte para a eternidade.
HAMLET
Sim, senhora, é um destino commum.
A RAINHA
Se é assim, o que te parece a ti tão extraordinario?
HAMLET
Senhora, não me parece, é-o na verdade. O parecer para mim nada vale. Minha mãe, não
são nem esta capa negra, nem estas vestes obrigadas nos lutos solemnes, nem os
suspiros que mal póde soltar um peito opprimido, nem torrentes de lagrimas, nem o
semblante macerado, nem todas as manifestações de uma dor pungente, que podem
exprimir e revelar o que eu sinto. Todos estes signaes podem parecer dor; é um papel
facil de representar, mas não são verdadeira dor, são como o fato para o comediante;
mas eu (pondo a mão sobre o coração) sinto aqui, o que não ha palavras que o
expressem.
O REI
Nada ha na verdade, Hamlet, mais commovente e louvavel do que os deveres funebres
prestados á memoria de um pae. Mas lembra-te que teu pae já perdêra o seu, e que esse
tambem já perdêra o pae. E para o sobrevivente um dever de piedade filial, dar durante
um certo praso provas de uma dor respeitosa; mas perseverar n'uma afflicção obstinada,
é mostrar uma teima impia; é uma dor cobarde, é a prova de uma vontade rebelde aos
decretos da providencia, de um coração sem energia, de uma alma incapaz de
resignação, de uma intelligencia pobre e limitada. Porque nos deve impressionar a tal
ponto um acontecimento, que sabemos ser uma necessidade, e que se repete tão
frequente, quanto as occorrencias mais vulgares; é uma triste indocilidade. Que!! É uma
offensa a Deus, uma offensa aos finados, uma absurda offensa á natureza, que não tem
em seus fastos mais vulgar acontecimento, que a morte de um pae; a qual, desde o
primeiro cadaver até [17] ao homem que hoje se finou, nunca deixou de nos clamar:
Assim estava escripto. Supplico-te, portanto, abandona essa afflicção impotente, e vê
em nós um segundo pae; porque queremos que todos saibam que tu és o mais proximo
ao nosso throno, e que a affeição mais terna que um pae tem a seu filho, tenho-a eu a ti.
Quanto á tua intenção de voltar a Wittemberg, para continuares os teus estudos, nada ha
mais opposto aos nossos desejos; conjurâmos-te que fiques aqui, sê o prazer de nossos
olhos, o primeiro da nossa côrte, nosso sobrinho, nosso filho.
A RAINHA
Hamlet, far-te-ha tua mãe uma supplica baldada? peço-te fica comnosco, não vás para
Wittemberg.
HAMLET
Farei o que podér, para em tudo vos provar obediencia.
O REI
Eis emfim uma resposta affectuosa e comedida. Serás na Dinamarca um segundo Eu. (Á
rainha) Venha, senhora, este acto de deferencia de Hamlet, cumprido tão naturalmente e
sem esforço, enche de jubilo o meu coração. Para o celebrar o rei de Dinamarca não
libará uma taça, sem que a voz do canhão o transmitta ás nuvens. A cada taça quero que
o céu o annuncie, repercutindo o estrondo dos raios da terra. Vamos agora. (Todos sáem
excepto Hamlet.)
HAMLET só
Ah! porque não poderá esta carne tão solida fundir-se e tornar-se orvalho. Ah que se o
Eterno não tivesse fulminado como reprobo o suicida... Senhor Deus, meu Deus, como
são insipidos, fastidiosos e vãos os gosos do mundo. Que pena! Elle é um jardim inculto
que só tem plantas grosseiras e maleficas. Pois será possivel que ousassem tanto? Morto
ha dois mezes! que digo? Nem dois mezes ainda. Um rei tão bom, que tanta similhança
tinha com este como Hyperion com um Satyro, todo ternura para minha mãe, a ponto de
não querer que uma brisa mais fresca açoutasse o seu rosto! Céus e terra! e deverei eu
recordar-me? Parecia que a vida de um era a vida do outro! Comtudo, passado apenas
um meznão posso nem quero pensal-o, fragilidade é synonymo de mulher. Só um
mez, sem [18] ainda ter gasto o calçado que usava acompanhando o feretro do marido,
banhada em lagrimas como uma Niobe, ella mesma, essa mulher, oh céus! um animal
privado do soccorro da rasão teria prolongado o seu luto; essa mulher desposou meu tio,
o irmão de meu pae, mas que tem tanto de meu pae como eu de Hercules. No fim de um
mez, antes que seccassem as suas hypocritas lagrimas, casou. Oh criminosa
precipitação! Voar com tanto afan a um leito incestuoso, é horrivel! E será possivel que
o céu o tolere? Despedaça-te coração, já que forçoso é calar.
Chegam HORACIO, BERNARDO e MARCELLO
HORACIO
Deus guarde a Vossa Alteza.
HAMLET
Quanto folgo de te ver de boa saude. És tu, Horacio, não me engano.
HORACIO
Eu mesmo, o vosso servo fiel até á morte.
HAMLET
Queres dizer amigo; de hoje em diante dar-te-hei este nome. Mas que fazes tu longe de
Wittemberg, Horacio? Marcello.
MARCELLO
Meu principe!
HAMLET
Alegro-me de te ver, bons dias. (A Horacio.) Mas, francamente, que motivo te obrigou a
voltar de Wittemberg?
HORACIO
Tudo dissipei.
HAMLET
Nunca consentiria que um teu inimigo assim fallasse a teu respeito; e não me obrigarás
a forçar a minha rasão a crer no que o meu coração se nega a acreditar. Accusares-te
d'esta maneira a ti mesmo... tu não és dissipador. Que motivo tão forte te pôde pois
trazer a Elsenor, tu m'o contarás mais tarde, entre dois copos de vinho generoso, antes
da tua partida.
[19]
HORACIO
Senhor, vim prestar a ultima homenagem a seu augusto pae.
HAMLET
Peço-te, meu camarada de estudos, que não zombes; creio antes que vieste assistir ao
casamento de minha mãe.
HORACIO
Verdade é que não houve quasi intervallo.
HAMLET
Por alvitre economico, Horacio. O banquete funerario ainda subministrou as iguarias e
as viandas para o festim nupcial. Antes quizera encontrar no céu o meu mais
encarniçado inimigo, do que ter visto despontar um tal dia, Horacio. Meu pobre pae,
parece-me que o estou vendo!
HORACIO
Onde, senhor?
HAMLET
Na minha imaginação, Horacio.
HORACIO
Recordo-me de o ter visto, era um grande rei.
HAMLET
Era um homem que, bem considerado, não tinha rival na terra.
HORACIO
Julgo tel-o visto a noite passada.
HAMLET
Viste, quem?
HORACIO
Alteza, vi o rei seu pae.
HAMLET
O rei meu pae?
HORACIO
Senhor, acalme esta agitação e espanto, e preste attenção, emquanto eu, fundado no
testemunho ocular d'estes senhores, vou relatar esse prodigio.
[20]
HAMLET
Falla, pelo amor de Deus, sou todo ouvidos.
HORACIO
Durante duas noites consecutivas, no meio das trevas e do silencio, emquanto estes
senhores estavam de sentinella, eis o que lhes aconteceu. Uma figura parecida com seu
pae, armada da cabeça aos pés, lhes appareceu caminhando lenta e magestosamente.
Tres vezes, atemorisados e attonitos, o viram passar á distancia do bastão de commando
que empunhava, emquanto elles, fulminados pelo terror, ficaram mudos, nem ousaram
fallar. Confiaram-me, debaixo de segredo, tremulos ainda, o que tinham presenceado.
Na noite seguinte entrei com elles de sentinella, e confirmando a verdade das suas
palavras, á hora por elles indicada, debaixo da fórma por elles descripta, voltou a
apparição. Reconheci seu pae; as minhas duas mãos não são mais parecidas.
HAMLET
Mas em que sitio appareceu?
MARCELLO
Senhor, na explanada, onde estavamos de sentinella.
HAMLET
Fallaram-lhe.
HORACIO
Fallámos, mas não respondeu. Comtudo uma vez pareceu-me que movia a cabeça, como
quem quer fallar; mas n'esse momento cantou o gallo matinal; ao som do canto afastouse
o espectro apressadamente, e nós perdemol-o de vista.
HAMLET
Na verdade é incomprehensivel.
HORACIO
Senhor, juro-lhe pela minha vida que é verdade, e julgámos nosso dever informar Vossa
Alteza.
HAMLET
Não posso dissimular a minha inquietação! Estão de guarda esta noite?
[21]
TODOS
Sim, Alteza.
HAMLET
Armado, disseram?
TODOS
Armado, meu senhor.
HAMLET
Da cabeça aos pés?
TODOS
Tal qual.
HAMLET
Viram-lhe as feições?
TODOS
Vimos, tinha a viseira levantada.
HAMLET
Tinha physionomia carregada?
TODOS
A expressão era antes triste que colerica.
HAMLET
Pallido ou córado?
TODOS
Muito pallido.
HAMLET
O seu olhar fixou-se em algum de vós?
TODOS
Constantemente.
HAMLET
Queria lá ter estado.
HORACIO
O seu espanto teria sido igual ao nosso.
HAMLET
É mais que provavel. Demorou-se muito?
HORACIO
O tempo necessario para contar até um cento, sem parar.
[22]
MARCELLO e BERNARDO
Muito mais, muito mais.
HORACIO
Não a vez que o vi.
HAMLET
A barba era grisalha, não é verdade?
HORACIO
Era, como em sua vida, de um negro prateado.
HAMLET
Velarei tambem esta noite, talvez que volte.
HORACIO
Sem duvida alguma.
HAMLET
Se se me apresentar debaixo da figura de meu pae, fallar-lhe-hei, embora o inferno me
ordenasse o silencio, pelas suas horrendas fauces. Peço-vos, portanto, que se até hoje
tendes guardado um segredo tal a respeito da apparição, de hoje em diante sejaes ainda
mais cautelosos em conservar o sigillo; e aconteça o que acontecer esta noite, reflexão e
silencio: serei grato a esta prova de affeição. Assim, pois, adeus, encontrarme-hei
comvosco na explanada entre as onze horas e a meia noite.
TODOS
Os nossos respeitos, principe.
HAMLET
Sempre amigos, adeus. (Horacio, Marcello e Bernardo sáem.) (Continuando.) A sombra
de meu pae, porque apparece armada? Haverá algum perigo. Suspeito alguma traição.
Espero impacientemente a noite. Até então, socega coração. Não ha crimes tão occultos,
que o homem não possa descobrir. (Sáe.)
[23]
SCENA III
Um quarto em casa de Polonio
Entram LAERTE e OPHELIA
LAERTE
Já embarcaram os meus creados e roupas. Adeus, minha irmã; quando ventos propicios
encherem as vélas ao navio que me leva, espero que com a minha ausencia não esfriará
a tua amisade, e que me darás novas tuas.
OPHELIA
Duvídas porventura, irmão?
LAERTE
Quanto ao que respeita a Hamlet e á sua frivola amisade, considera-a como uma moda
ephemera, um capricho dos sentidos, uma violeta da primavera, precoce mas passageira,
suave mas fenecendo ao desabrochar, e cujo perfume dura um minuto apenas.
OPHELIA
Só um minuto?
LAERTE
Só, acredita-me, porque o teu desenvolvimento não é só nos musculos e no corpo; á
medida que o templo toma proporções mais vastas, tambem se expande o espirito e a
alma. É possivel que te ame agora, que nenhuma macula, nenhuma deslealdade
offusque a pureza dos seus sentimentos; mas acautela-te, porque na posição que occupa
é-lhe vedada a propria vontade, é escravo do seu nascimento. Não póde, como os outros
homens, escolher só por affeição, porque á sua escolha estão ligados o bem-estar e a
salvação do estado; por isso deve subordinal-a ao voto e á approvação da nação de que é
chefe. Se, pois, te fallar de amor, assisadamente usarás, não acreditando senão o que a
sua posição lhe permitte offerecer, vistoque a sua vontade deve ser a vontade da nação.
Pensa bem, que mancha para a tua reputação, se prestasses ouvidos por demais credulos,
ao encanto das suas fallas, se envenenasses tua alma, se abrisses o cofre da castidade ás
suas audaciosas instancias. [24] Acautela-te, Ophelia, acautela-te, querida irmã, luta
com a tua affeição para vencer as settas e os perigos dos desejos. A virgem prudente já é
assás prodiga se patenteia a sua belleza aos raios lunares; a propria virtude não escapa
aos golpes da calumnia; o verme roe as filhas predilectas da primavera, antes das flores
desabrocharem; e é na aurora da vida, regada pelo puro e limpido orvalho, que ha mais
perigo para a flor da castidade. Sê, pois, circumspecta, a melhor protecção é o receio do
perigo; a juventude é para si mesma um perigo, se não trava luta com outros maiores.
OPHELIA
Em meu coração encerrarei, como um preservativo, a tua salutar lição. Mas, querido
irmão, não sejas tu, como certos pastores sem virtude, que indicam ás suas ovelhas o
caminho escarpado e espinhoso que conduz ao céu, emquanto elles, libertinos, fogosos e
sem pudor, trilham o caminho das flores, da licença, e são a antithese das suas palavras.
LAERTE
De mim não te arreceies: já devia ter partido; eis meu pae.
Entra POLONIO
Uma dupla benção é um beneficio duplo; abençôo a occasião de me despedir segunda
vez de ti.
POLONIO
Ainda aqui, Laerte? para bordo, para bordo. Não te envergonhas? Teu navio só te espera
para velejar. Recebe a minha benção, e grava na tua memoria os seguintes preceitos.
Guarda para ti o pensamento, e não dês execução apressadamente aos teus projectos;
medita-os maduramente. Sê lhano sem te esqueceres de quem és. Quando tomares um
amigo cuja affeição tenhas experimentado, liga-o a ti por vinculos de aço; mas não dês
confiança irreflectidamente. Faze por evitar questões; mas se o não podéres conseguir,
conduze-te de maneira que fiques sempre superior ao teu adversario. Ouve a todos, mas
sê avaro de palavras; escuta o conselho que te derem, forma depois o teu juizo. No teu
trajar sê tão sumptuoso, quanto t'o permittam os teus meios, mas nunca affectado; rico,
mas não offuscante; o porte dá a conhecer o homem, e n'esse ponto, as pessoas de [25]
qualidade em França revelam um gosto primoroso, e o mais fino tacto. Não emprestes,
nem peças emprestado: quem empresta perde o dinheiro e o amigo, e o pedir
emprestado é o primeiro passo para a ruina. Mas sobre tudo sê verdadeiro para a tua
consciencia, e assim como a noite se segue ao dia, seguir-se-ha tambem, que o teu
coração jamais abrigará falsidade. Adeus, que a minha benção selle em teu coração os
meus conselhos.
LAERTE
Despedindo-me, humildemente vos beijo a mão, meu pae.
POLONIO
Não tens tempo que perder, teus creados esperam-te.
LAERTE
Adeus, Ophelia, recorda-te das minhas palavras.
OPHELIA
Fechei-as no meu coração; dou-te a chave, guarda-a.
LAERTE
Adeus. (Sáe.)
POLONIO
Que te disse elle, Ophelia?
OPHELIA
Com licença de meu pae, fallou-me a respeito de Hamlet.
POLONIO
Folgo que o fizesse. Disseram-me que ultimamente Hamlet tem tido comtigo frequentes
entrevistas, e que tu não te esquivas ás suas frequentes visitas. Se assim é, e creio na
informação que me deram, devo dizer-te que não encaras a tua posição com a lucidez
que convem a minha filha, e que a tua honra exige. Dize-me a verdade, o que ha?
OPHELIA
Protestos de amor.
POLONIO
De amor! como inexperiente fallas, conservas as illusões todas. Dás tu porventura
credito aos seus protestos, como tu lhe chamas?
[26]
OPHELIA
Nem sei, senhor, o que devo pensar.
POLONIO
Pois bem, eu t'o digo. É necessario que sejas bem creança para crer uma realidade os
seus protestos, de cuja sinceridade devéras duvido. Não te deprecies assim; seria uma
loucura.
OPHELIA
O seu respeito foi inseparavel das suas phrases de amor.
POLONIO
E tu acreditas, pobre louca.
OPHELIA
Firmou as suas palavras com os juramentos mais sagrados.
POLONIO
Assim arma o caçador os laços á avesinha innocente e incauta. Sei que, quando o
sangue ferve, a nossa bôca nunca se nega a protestos e juramentos. Minha filha, estes
lampejos que dão mais luz que calor, e cujo brilho é ephemero, nunca os tomes por
verdadeira chamma de amor. A datar de hoje, não malbarates tanto a tua presença
virginal; difficulta mais as entrevistas, que não baste pedir para as obter. Quanto ao sr.
Hamlet e á confiança que n'elle podes ter, considera que é joven, e que póde tomar
liberdades de que depois tenhas que te arrepender. N'uma palavra, Ophelia, descrê dos
seus juramentos, porque não são verdadeiros; interpretes de desejos profanos, revestemse
da linguagem da mais santa sinceridade. Uma vez por todas, e franqueza, filha,
prohibo-te toda e qualquer conversa com o sr. Hamlet. Pensa bem. Ordeno-t'o.
OPHELIA
Obedecerei, meu pae. (Sáem.)
[27]
SCENA IV
A explanada do castello de Elsenor
Chegam HAMLET, HORACIO e MARCELLO
HAMLET
Que frio horrivel, gélo.
HORACIO
O ar está devéras glacial.
HAMLET
Que horas são?
HORACIO
Não deve tardar a meia noite.
MARCELLO
Está dando meia noite.
HORACIO
Já! não ouvi, em todo o caso approximâmo-nos da hora a que costuma apparecer o
phantasma. (Ouvem-se ao longe tangeres de instrumentos, e o troar de artilheria.) Que
rumor é este?
HAMLET
O rei consagra esta noite ao prazer, está bebendo, e a cada copo de vinho do Rheno, os
timbales e clarins proclamam o brinde que levantou.
HORACIO
Isso é costume?
HAMLET
Sim é, mas apesar de eu ter nascido n'este paiz, e estar acostumado a estes usos, ha
emquanto a mim mais gloria em infringil-os, do que em observal-os. Estas orgias
abjectas trazem-nos, do oriente ao occidente, o desprezo das outras nações, que nos
qualificam de ebrios, e juntam aos nossos nomes os epithetos mais grosseiros. Este
defeito embaça as nossas mais brilhantes qualidades, e tira-lhes todo o valor. O mesmo
acontece aos individuos. Se ao nascerem, receberam da natureza alguma macula
original, de que não são culpados, poisque o nascimento é independente da nossa
vontade; se os [28] afflige algum vicio de temperamento contra o qual todos os esforços
da rasão são impotentes, algum costume que desagrade nos seus modos destruindo-lhes
o encanto; acontece a esses homens, tendo o estigma de um defeito unico, libré da
natureza, sêllo da sua estrella, acontece, digo, que todas as suas virtudes, fossem ellas
puras como a graça celeste, infinitas quanto comporta á humanidade, ficariam
manchadas na opinião, publica por esse defeito unico. Basta uma mollecula de liga para
depreciar esse metal.
Apparece a sombra
HORACIO
Senhor, eil-o.
HAMLET
Anjos do céu, poderes misericordiosos, protegei-nos. Genio bemfazejo, ou demonio
infernal, que exhalas os perfumes celestes, ou as emanações do averno; que sejam
sinistras ou caridosas as tuas intenções, appareces-me debaixo de uma fórma tão grata
que te quero fallar. Interrogo-te, Hamlet, senhor, meu pae, rei de Dinamarca, oh!
responde-me, não me deixes, na ignorancia, morrer de emoção; mas dize-me, porque
teus bentos ossos encerrados no ataude romperam os sellos; porque te levantaste do
tumulo em que te haviamos depositado; porque se ergueu a lapide sepulchral para te
lançar a este mundo? Como, cadaver inanimado, vestindo a tua armadura de aço,
vagueias tu á duvidosa claridade da lua, imprimindo á noite um caracter de horror,
lançando-nos, fracos ludibrios da natureza, nas ancias do terror; e fazendo surgir em
nossas almas pensamentos que excedem o nosso alcance? Responde. Porque? Com que
fim? Que exiges?
HORACIO
Faz-vos signal de o seguir, como se quizesse fallar-vos a sós.
MARCELLO
Veja, principe, o gesto cheio de cortezia e dignidade, com que o convida a seguil-o a
logar mais remoto; mas não vá.
HORACIO
Senhor, pelo amor de Deus.
[29]
HAMLET
Quer-me fallar, pois bem, seguil-o-hei.
HORACIO
Não faça tal, senhor.
HAMLET
Porque? que tenho eu a receiar, importa-me tanto a vida, como se fosse um alfinete;
quanto á minha alma, nada póde contra ella, porque é immortal, como elle é. Repete o
signal, vou seguil-o.
HORACIO
E se elle vos attrahisse ao Oceano ou ao pincaro escarpado de algum rochedo saliente e
sobranceiro ao mar; e se tomasse alguma fórma horrivel, cuja vista vos varresse a rasão
tornando-vos demente? Pensae bem, senhor, não receiaes alguma vertigem ao
contemplar de alto a immensidade debaixo de vossos pés?
HAMLET
Continua a fazer-me signal. Caminha, sigo-te.
MARCELLO
Não ha de ir, senhor.
HAMLET
Ninguem me detenha.
HORACIO
Seja rasoavel, principe, não vá.
HAMLET
Ouço a voz do meu destino; brada alto, e cada um dos meus musculos adquiriu o vigor
dos do leão de Nemea. (A sombra faz-lhe signal de a seguir.) Chama-me outra vez,
deixem-me, senhores (escapa-se-lhes dos braços.) Por Deus, que não viverá, quem ousar
oppôr-se-me. Afastem-se, já disse. (Á sombra.) Caminha, sigo-te. (A sombra e Hamlet
afastam-se.)
HORACIO
Apoderou-se d'elle o delirio.
MARCELLO
Sigamol-o; desobedecer-lhe é forçoso n'estas circumstancias.
[30]
HORACIO
Não o abandonemos. Qual será o resultado!
MARCELLO
Algum vicio ha na constituição da Dinamarca.
HORACIO
O céu proverá o que for melhor.
MARCELLO
Sigamos o principe. (Sáem todos.)
SCENA V
Uma parte mais afastada da explanada
Chegam HAMLET e a SOMBRA
HAMLET
Onde pretendes conduzir-me; mais adiante não irei.
A SOMBRA
Encara-me, Hamlet.
HAMLET
Que queres?
A SOMBRA
Approxima-se a hora em que me devo recolher ás chammas sulphureas e ardentes.
HAMLET
Pobre alma!
A SOMBRA
Não me lastimes, mas presta attenção ao segredo que te vou revelar.
HAMLET
Falla, é meu dever escutar-te.
A SOMBRA
Dever tambem é vingar-me depois de me teres ouvido.
HAMLET
Que ouço! [31]
A SOMBRA
Sou a alma de teu pae, condemnada a penar durante um tempo certo, a jejuar n'um
carcere de chammas, até que as culpas que mancharam a minha vida estejam
completamente expiadas e purificadas pelo fogo. Se não me fosse defezo revelar os
segredos do meu carcere, far-te-ía uma narrativa de que cada palavra encheria de terror
a tua alma, gelaria o teu sangue, os olhos quaes estrellas brilhantes saíriam das suas
orbitas, os anneis do teu cabello desfazer-se-íam em completa desordem, e cada cabello
ficaria hirto como as cerdas do javali; mas estes mysterios eternos não são para ouvidos
profanos de carne e de sangue. Escuta, escuta, oh escuta-me! se alguma vez amaste teu
carinhoso pae...
HAMLET
Oh céus!
A SOMBRA
Vinga a sua morte, causada por um assassinio, cobárde, infame e nefando.
HAMLET
Um assassinio?
A SOMBRA
Infame! todos os assassinios o são, mas nunca houve nenhum mais infame, inaudito e
horrendo do que este.
HAMLET
Apressa-te em desvelar-m'o, para que prompto, como a meditação, ou como o
pensamento de amor, possa saciar a minha vingança.
A SOMBRA
Grato sou ao teu empenho, Hamlet; era preciso que fosses mais apathico do que a planta
grossa e crassa que immovel e inerte apodrece nas margens do Lethes, se não sentisses
n'este momento commoção alguma. Agora, ouve-me. Espalhou-se que emquanto
dormia no meu jardim, uma serpente me mordêra; é assim que uma fallaz narrativa
enganou a Dinamarca sobre a causa da minha morte. Sabe tu pois a verdadeira, nobre
mancebo: a serpente cujo dardo matou teu pae, cinge hoje a corôa d'este reino.
HAMLET
Oh meus propheticos presentimentos, meu tio!
[32]
A SOMBRA
Sim, esse monstro, incestuoso, adultero pela magia das palavras, pelos dotes insidiosos.
Oh loquela perversa, oh dotes nefarios, poisque tem tal poder de seducção, e conseguiu
inspirar essa vergonhosa paixão a minha mulher, apparentemente tão virtuosa. Oh!
Hamlet, que degradação! Descer de mim, cujo amor nobre e digno não tinha desmentido
um instante o juramento prestado junto ao altar, a um miseravel, entre cujas qualidades
naturaes e as minhas havia um abysmo! Mas assim como a virtude resiste inabalavel ás
tentações do vicio, aindaque debaixo da fórma da Divindade lhe apparecesse, assim
tambem a impudicicia, embora associada a um anjo celeste de luz, cansa-se da santidade
do leito conjugal, para ir habitar o mais desprezivel prostibulo. Mas já sinto a frescura
da aurora, forçoso é que eu termine. Emquanto dormia no meu jardim, era esse o meu
costume todas as tardes; teu tio, aproveitando a minha inconsciencia, approximou-se de
mim, munido de um frasco de meimendro, e lançou-me n'um ouvido o conteúdo. É um
veneno tão activo para o sangue humano, que com a subtileza do mercurio corre e se
infiltra em todos os canaes, em todas as veias, coalhando e alterando o sangue pela sua
acção energica: o mais puro e limpido não lhe resiste, é como uma gotta de qualquer
acido n'uma taça de leite. Tal foi o seu effeito, que uma lepra instantanea cobriu meu
corpo de uma crosta impura e infecta. Eis como durante o meu somno, tudo me foi
arrebatado de uma vez, e pela mão de um irmão, vida, corôa e consorte. A morte
surprehendeu-me em estado flagrante de peccado; sem sacramentos, sem me reconciliar,
nem com Deus, nem com a minha consciencia; tinha que comparecer perante o Juiz
Supremo vergando sob o peso das minhas iniquidades. Horror, horror, cumulo de
horror! Se em teu coração vibra a fibra da sensibilidade, não o toleres. Não consintas
que o leito do rei de Dinamarca se transforme em mansão da luxuria e do incesto. Mas
seja qual for a tua vingança, conserva-te moral e puro, e poupa tua mãe. Entrega o seu
castigo ao céu, e aos espinhos do remorso que lhe dilaceram o coração. Adeus, cumpreme
deixar-te; a luz do perilampo, cujo fogo sem calor começa a esmorecer, annuncia a
approximação da aurora. Adeus, adeus, adeus. Recorda-te sempre de mim. (A sombra
retira-se.)
[33]
HAMLET
Oh! santas legiões do céu, oh! terra, que mais? Invocarei o inferno? Oh! opprobrio;
contém-te, ah! contém-te, meu coração, e vós, meus musculos, não percaes o vigor, e
redobrae de força e energia para me suster. Recordar-me de ti? Sim, sombra infeliz,
emquanto a memoria não abandonar este meu cerebro desordenado. Recorda-te de mim;
sempre! quero varrer da minha memoria todas as recordações frivolas, todas as
maximas colhidas nos livros, todos os vestigios, todas as impressões do passado, tudo
quanto a juventude e a observação coordenaram, e em sua vez dar só lugar, sem rivaes,
juro-o pelo céu, aos teus preceitos. Oh! mulher perversa, oh infame e damnado monstro!
oh memoria, grava bem o seguinte, que nos sorrisos do homem se póde occultar um
crime; assim é na Dinamarca (escreve n'uma carteira). Meu tio, espere-me. A minha
senha será de hoje em diante. Adeus, adeus, adeus. Recorda-te de mim. Jurei-o.
HORACIO ao longe
Senhor, senhor?
MARCELLO ao longe
Senhor Hamlet?
HORACIO
Que o céu o proteja.
HAMLET
Assim seja.
MARCELLO ao longe
Olá, olá, senhor!
HAMLET
Pousa meu falcão, pousa. (Imita o canto do falcão e o chamamento do falcoeiro.)
Chegam HORACIO e MARCELLO
MARCELLO
O que se passou, senhor?
HORACIO
Que novas, senhor?
HAMLET
As mais extraordinarias.
HORACIO
Conte-nol-as, principe.
[34]
HAMLET
É um segredo.
HORACIO
E não sou eu capaz de o guardar? O principe conhece-me.
MARCELLO
E eu?
HAMLET
Que me dirão quando o souberem: que coração humano o teria pensado. Juram-me
segredo?
HORACIO e MARCELLO
Jurâmos.
HAMLET
Não ha em toda a Dinamarca um scelerado igual.
HORACIO
Era necessario que um espectro saísse do tumulo para nol'o dizer?
HAMLET
É verdade, têem rasão. Basta de palavras, um aperto de mão, e cada um volte onde o
chamam os negocios e as suas inclinações, porque todos têem inclinações e negocios,
sejam quaes forem: eu, pobre pária do mundo, vou orar.
HORACIO
São palavras incoherentes e sem sentido, alteza.
HAMLET
Peza-me que te offendesses, peza-me devéras.
HORACIO
Em que, senhor?
HAMLET
Por S. Patricio, que te offendi e gravemente. Quanto á apparição de inda agora, é um
phantasma honesto, digo-t'o eu. Quanto ao desejo de conhecerem, senhores, o que entre
nós se passou, reprimam-n'o. E agora, meus bons amigos, em nome da nossa amisade,
da nossa camaradagem de estudos e de armas, façam-me um favor.
[35]
HORACIO
Qual é? Não hesitâmos.
HAMLET
Nunca digam o que viram esta noite.
AMBOS
Conte com a nossa palavra, principe.
HAMLET
Quero um juramento.
HORACIO
Prometti o segredo.
MARCELLO
Já jurámos.
HAMLET
Mas jurem sobre a minha espada.
A SOMBRA (debaixo da terra)
Jurem.
HAMLET
Ah! ah! meu camarada, és tu que fallas; estás ahi, meu valente, approxima-te; ouvem a
sua voz, prestem o juramento.
HORACIO
Diga-nos a formula, principe.
HAMLET (afastando-se um pouco com elles)
Jurem sobre a minha espada, que guardarão sigillo do que viram e ouviram.
A SOMBRA (debaixo da terra)
Jurem.
HAMLET
Hic et ubique. Vamos para mais longe. (Afastam-se um pouco.) Approximem-se, e
estendendo a dextra sobre a minha espada, jurem por este gladio nunca revelar o que
viram e ouviram.
A SOMBRA (debaixo da terra)
Jurem pela sua espada.
HAMLET
Bravo, velha toupeira, como caminhas depressa subterraneamente, [36] que bello
mineiro! Afastemo-nos mais uma vez, meus bons amigos.
HORACIO
Por vida minha, é prodigioso!
HAMLET
Acolhâmol-o como se acolhe um estrangeiro. O céu e a terra encerram mais mysterios,
que os conhecidos pelos philosophos; mas venham. Notem o que notarem nos meus
modos, se eu julgar necessario affectar maneiras extravagantes, jurem-me pela sua
salvação que nunca cruzarão os braços, meneando a cabeça, nem lhes escaparão
palavras ambiguas, como por exemplo: Muito bem, muito bemjá sabemosouse
quizessemos fallarouainda ha pessoas que se ousassemou outras expressões
equivocas, dando a perceber que estão na confidencia; jurem que nada farão; e possa,
quando mais precisarem, não lhes faltar a graça divina.
A SOMBRA (debaixo da terra)
Jurem.
HAMLET
Acalma-te, alma penada. Assim, senhores, recommendo-me á vossa affeição, e tudo
quanto um homem tão debil como Hamlet possa fazer para lhes provar o seu affecto,
fal-o-ha com a ajuda de Deus. Retiremo-nos juntos, e silencio; peço-lh'o eu. Ha no
mundo alguma grande perturbação. Maldição. Porque serei eu o eleito para a terminar?
Vamos, partâmos juntos.
Fim do acto primeiro
[37]
ACTO SEGUNDO
SCENA I
Uma sala em casa de Polonio
Entram POLONIO e RINALDO
POLONIO
Rinaldo, entrega a meu filho este dinheiro e estas letras.
RINALDO
Sim, meu senhor.
POLONIO
Mas antes de o procurar, obrarás assisadamente tomando informações a seu respeito.
RINALDO
Era essa a minha intenção.
POLONIO
Bem, muito bem; toma antes todas as informações pelos dinamarquezes que estão em
París, vê as suas relações, e com quem se dão, quaes os seus gastos; depois de te
assegurares pelas tuas perguntas que conhecem meu filho, procura colher informações
mais exactas, sem comtudo o dar a entender. Dissimula que o conheces perfeitamente,
dizendo, por exemplo: Conheço o pae e a familia, mas d'elle não tenho conhecimento
algum. Entendes, Rinaldo?
[38]
RINALDO
Perfeitamente, senhor.
POLONIO
De todo não me é desconhecido, pódes acrescentar. Conheço-o pouco é verdade,
comtudo aquelle de quem fallo é um dissipador com todos os seus defeitos; imputa-lhe
então todos os vicios que te parecer, excepto aquelles que podem deshonrar um homem,
toma conta n'isso; só as loucuras e imprudencias proprias de um joven que se sente livre
de todo o constrangimento paterno.
RINALDO
O jogo, talvez?
POLONIO
Bem, e as bebidas, a esgrima, as pragas, o genio buliçoso, a convivencia do prostibulo, é
até onde te auctoriso que chegues.
RINALDO
Actos são, na verdade, que não deshonram.
POLONIO
Sabes bem como te deves haver fazendo estas imputações. Não aggraves os factos
accusando-o de devassidão continua e habitual; não pretendo tal; censura-o mas com
discrição; exprime-te como se attribuisses as suas faltas aos defeitos inherentes á
mocidade, ao abuso da liberdade, ao arrebatamento de um espirito fogoso, á
effervescencia de um sangue ardente.
RINALDO
Mas, senhor?
POLONIO
Porque será conveniente obrar assim.
RINALDO
Para lh'o perguntar estava eu.
POLONIO
É onde eu queria chegar, e na minha opinião é um ardil sem igual. Depois de teres
imputado a meu filho esses ligeiros defeitos, que se podem considerar quando muito
como imperfeições n'uma bella obra; se o teu interlocutor, aquelle que queres sondar,
notou no joven a que te referes algum dos vicios [39] mencionados, está certo que
responderá immediatamente: Meu caro senhor, ou meu amigoou meu cavalheiro
segundo o costume do individuo, ou o uso do paiz...
RINALDO
Prosiga, senhor.
POLONIO
Então... que estava eu dizendo? pela santa missaque queria eu dizer? o que era?
RINALDO
Fallava da resposta...
POLONIO
Que te darão, é isso, e não deixarão de responder: Conheço esse mancebo, vi-o ainda
hontem, ou outro qualquer dia, em tal epocha, com estes ou com aquelles, surprehendio
jogando, ou n'uma orgia ou numa rixa, ou ainda, vi-o entrar n'uma casa suspeita; ou
outras cousas similhantes: agora vês como com a mentira se colhe a verdade. É assim
que nós, as pessoas entendidas, empregâmos a miudo o embuste e a falsidade para
descobrir a verdade. Ahi está o caminho que seguirás para saber o comportamento de
meu filho. Percebes agora?
RINALDO
Sim, meu senhor.
POLONIO
O Senhor seja comtigo, boa viagem.
RINALDO
Meu amo!
POLONIO
Observa tu mesmo as suas inclinações.
RINALDO
Fal-o-hei, senhor.
POLONIO
Mas não o distráias da sua vida.
RINALDO
Bem entendo.
POLONIO
Adeus. (Rinaldo sáe.)
[40]
Entra OPHELIA
POLONIO
Que te traz por aqui, Ophelia?
OPHELIA
Meu pae, meu pae, ainda tremo.
POLONIO
Porque? Falla por piedade.
OPHELIA
Querido pae, estava no meu quarto trabalhando em costura, quando de repente deparo
com o sr. Hamlet, mas em que estado! as vestes em desordem, o cabello em desalinho,
as meias caídas arrastavam pelo chão, pallido e branco como uma mortalha, tremiamlhe
as pernas, o rosto tinha a expressão do desespero, qual profugo do inferno
mensageiro de novas horriveis.
POLONIO
Enlouqueceria por tua causa?
OPHELIA
Não sei, meu pae, mas receio-o devéras.
POLONIO
Que te disse elle, Ophelia?
OPHELIA
Tomou-me os pulsos, apertando-os convulsivamente, depois afastando-se á distancia do
seu braço, levando a mão á testa, fitou os olhos no meu rosto, como se me quizesse
retratar. Assim se demorou por largo tempo, por fim saccudindo-me levemente o braço,
levantando e baixando por tres vezes a cabeça, suspirou tão profundamente, que todo o
seu corpo estremeceu, parecia o prenuncio da morte. Feito isto, deixou-me, partiu e
desviando a cabeça, como um homem que para achar caminho não precisa o auxilio da
vista, transpoz a porta; mas então o seu olhar estava fito em mim.
POLONIO
Segue-me, filha, vou procurar o rei. É o delirio do amor; a [41] sua violencia mata-o, e
impõe á sua vontade actos de desespero, que nenhuma outra paixão humana excitaria.
Peza-me sinceramente. Dize-me, ter-lhe-ías tu dirigido ultimamente alguma palavra
cruel.
OPHELIA
Não, meu pae; mas obedecendo ás suas ordens, recusei as suas cartas e evitei a sua
presença.
POLONIO
Eis o que perturbou a sua rasão. Doe-me de o não ter conhecido melhor: receiei que as
suas intenções não fossem serias, e que só pretendesse consummar a tua ruina.
Arrependo-me do fundo de alma das minhas desconfianças. Parece que o confiar
cegamente na previdencia é o apanagio da minha idade, como o contrario é o defeito da
mocidade. Vem, dirijâmo-nos ao rei, convem que elle nada ignore; porque o sigillo
d'este amor poderia acarretar mais desgraças do que a sua revelação resentimentos.
(Sáem ambos.)
SCENA II
Uma sala no castello de Elsenor
Entram o REI, a RAINHA, as suas comitivas, ROSENCRANTZ e GUILDENSTERN
O REI
Sejam bemvindos, caros Rosencrantz e Guildenstern. Independentemente do gosto de os
ver, a necessidade do seu prestimo me obrigou a chamal-os a esta côrte sem demora.
Ouviram seguramente fallar da transformação de Hamlet; digo transformação, porque já
não é o mesmo homem, nem moral nem physicamente. Só a morte do pae póde ser a
causa do transtorno da sua rasão, não posso conceber outra. Educados com elle desde a
infancia, sympathisando entre si pela idade e pelo caracter, peço-lhes que permaneçam
algum tempo na côrte, procurem inspirar-lhe o gosto e prazer da sua convivencia,
aproveitem todas as occasiões para descobrir se a sua afflicção não tem alguma causa
desconhecida, cuja revelação nos permittisse dar-lhe remedio.
[42]
A RAINHA
Bastante tem fallado nos senhores, e estou convencida que ninguem no mundo lhes é
mais affeiçoado. A liberalidade do rei compensará largamente os seus serviços e os seus
incommodos. Esperâmos dos senhores esta prova de affeição.
ROSENCRANTZ
Vossas magestades são nossos soberanos, e os reis não pedem, mandam.
GUILDENSTERN
Estamos promptos a obedecer; disponham de nós, senhores. Depondo aos pés dos reis
os nossos serviços e a nossa dedicação, pedimos-lhes só que ordenem.
O REI
Obrigado, senhores.
A RAINHA
Obrigada tambem eu; vão ter com meu filho: infelizmente mal o reconhecerão. (Á sua
comitiva) Alguns d'estes senhores conduzam estes cavalheiros junto de Hamlet.
GUILDENSTERN
Praza a Deus, que a nossa presença lhe seja agradavel e os nossos cuidados um lenitivo.
A RAINHA
Deus queira. (Rosencrantz e Guildenstern sáem seguidos de alguns cortezãos.)
Entra POLONIO
POLONIO
Senhor, regressaram de Noruega os embaixadores, satisfeitos com o resultado da sua
missão.
O REI
És sempre correio de boas novas.
POLONIO
Senhor! esteja vossa magestade certo que a minha alma põe a par a dedicação ao meu
rei e o respeito e amor ao meu Deus. A menos que a minha sagacidade habitual me
enganasse, descobri a verdadeira causa da loucura do senhor Hamlet.
[43]
O REI
Estou ancioso por conhecel-a.
POLONIO
Primeiro os embaixadores, depois eu.
O REI
Recebe-os, e encarrego-te de os introduzir á nossa presença. (Polonio sáe.) (Á rainha.)
Annunciou-me, querida Gertrudes, que conhece a causa da doença de seu filho.
A RAINHA
Receio bem que a morte de seu pae e o nosso precipitado consorcio sejam as causas
unicas.
O REI
Sabel-o-hemos em breve.
Entram POLONIO, VOLTIMANDO e CORNELIO
O REI
Bemvindos sejam, amigos. Falla tu, Voltimando; que novas trazes de nosso irmão de
Noruega?
VOLTIMANDO
Envia-vos seus cumprimentos e sauda-vos cordealmente. Mal nos ouviu, ordenou ao
sobrinho que pozesse fim aos seus preparativos guerreiros. Julgava-os dirigidos contra a
Polonia; mas convencido por um detido exame que eram contra vossa magestade, e
indignado por Fortimbraz se prevalecer do estado precario, a que a idade e a doença o
tinham reduzido, ordenou-lhe que comparecesse na sua presença. Fortimbraz obedeceu
á ordem intimada, e depois de severamente reprehendido pelo rei de Noruega, prestou
nas mãos de seu tio o juramento de nada emprehender contra vossas magestades. O
idoso monarcha, para provar o seu jubilo, concedeu-lhe uma pensão annual de tres mil
escudos, e licença para combater os polacos com as tropas alistadas. Ao mesmo tempo
pede-vos pelas presentes (entrega as cartas), que concedaes ás suas tropas livre
passagem pelo vosso territorio nas condições estipuladas n'este escripto.
[44]
O REI
Este resultado enche-nos de satisfação; quanto ao pedido, lel-o-hemos, e depois de
maduramente examinado, responderemos. Agradecemos-lhes os seus valiosos serviços.
Descansem agora; juntos ceiaremos logo. (Voltimando e Cornelio sáem.)
POLONIO
Felizmente está terminado este negocio. Senhor e senhora; discutir o que constitue a
auctoridade, e em que consiste a obediencia dos subditos, porque a noite é noite, o dia é
dia, e o tempo é tempo, seria perder sem proveito a noite, o dia e o tempo; por isso,
visto que a concisão é a alma do espirito, emquanto que a prolixidade é só o corpo ou o
involucro exterior, serei breve: Vosso nobre filho está louco, digo louco, porque haveria
falta de rasão em querer definir o que constitue verdadeiramente loucura. Passemos
adiante...
A RAINHA
Menos estylo, Polonio.
POLONIO
Senhora, não faço estylo, juro-o. Seu filho está louco; é triste, mas é verdade. É verdade
que é uma lastima, mas é uma lastima que seja verdade; é uma estulta antithese, mas tal
qual é acceite-a; não emprego arte. Está louco; resta-nos procurar a causa d'esse effeito,
ou antes defeito, porque forçosamente a deve ter. Siga bem o meu raciocinio: Tenho
uma filha, tanto a tenho, que me pertence. Minha filha, fiel ao dever e á obediencia que
me deve, note bem, entregou-me este escripto. (Mostra um papel.) Reflicta e depois tire
a conclusão. (Lê.) Ao idolo da minha alma, á celeste Ophelia, á belleza personificada...
É uma desgraçada e estulta expressão. Conserva preciosamente estas linhas, no teu seio
alabastrino...
A RAINHA
É de Hamlet a Ophelia.
POLONIO
Espere um momento, senhora, cito textualmente. (Lê)
Duvida que do céu a abobada azulada
Tenha espheras de luz de um magico esplendor,
Duvida seja o sol o facho da alvorada,
Duvida da verdade em tua alma gravada,
Mas não duvides nunca, oh! nunca, d'este amor.
[45]
Querida Ophelia, não sou poeta, não sei modular suspiros com arte, mas podes
acreditar que te amo, mais que tudo n'este mundo. Adeus, a ti, para sempre minha vida,
a ti emquanto esta machina mortal me pertencer.==Hamlet.==Eis-ahi o que, por
obediencia, minha filha me entregou. Já antes ella me tinha confiado as tentativas de
Hamlet, á proporção que renovava as suas instancias amorosas.
O REI
Como pôde ella acolher este amor?
POLONIO
Em que conta me tem, senhor?
O REI
Na de um homem leal e honrado.
POLONIO
Farei por merecer sempre esse conceito a vossa magestade; mas que pensaria o rei de
mim, se vendo despontar esse amor, e já o tinha adivinhado antes da confissão de minha
filha, que pensariam o rei e a rainha, se me calasse, e me tornasse mudo confidente do
seu amor; se, testemunha da sua paixão, tivesse imposto silencio ao meu coração, ou se
a considerasse com indifferença? má idéa por certo fariam de mim. Não perdi um
momento, disse a minha filha: O senhor Hamlet é um principe collocado fóra da tua
esphera; isto não póde ser.Ordenei-lhe então que evitasse a sua convivencia, e que
nunca mais recebesse nem mensagens nem dadivas. Seguiu o meu conselho, e para
abreviar a minha narração, o principe, vendo-se assim repellido, caíu primeiro n'uma
profunda tristeza, em seguida repugnaram-lhe os alimentos, mais tarde teve insomnias,
depois abatimentos e fraqueza intellectual, finalmente, e sempre gradualmente, chegou á
demencia e ao delirio. Deplorâmol-o todos.
O REI
E pensas ser essa a causa?
A RAINHA
É muito provavel.
[46]
POLONIO
Quizera me dissessem, se aconteceu alguma vez affirmar eu alguma cousa que não fosse
certa.
O REI
Nunca que eu saiba.
POLONIO
Se não é verdade o que disse (mostrando a cabeça), que esta role a seus pés. Basta-me a
mais simples circumstancia para descobrir a verdade, aindaque estivesse occulta nas
entranhas da terra.
O REI
Por que modo nol-o poderás tu provar.
POLONIO
Vossa magestade não ignora que o sr. Hamlet algumas vezes passeia quatro horas
consecutivas n'esta galeria.
A RAINHA
É certo.
POLONIO
Quando ali estiver, enviar-lhe-hei minha filha, e nós, occultos por detrás d'esta cortina,
seremos testemunhas da entrevista. Se não a ama, se não foi o amor a causa da sua
loucura, deixe eu de pertencer aos conselhos de vossa magestade, e faça de mim um
quinteiro, um hortelão ou um abegão.
O REI
Tentemos a experiencia.
HAMLET entra lendo
A RAINHA
A leitura é a unica distracção d'este infeliz.
POLONIO
Retirem-se ambos por piedade. Vou fallar-lhe. Confiem em mim. (O rei e a rainha
sáem) Como se sente o sr. Hamlet?
HAMLET
Bem, Deus louvado.
[47]
POLONIO
Conhece-me, principe?
HAMLET
Se conheço, és um vendilhão de peixe.
POLONIO
Engana-se, senhor.
HAMLET
N'esse caso, queria que ao menos fosses tão honrado.
POLONIO
Honrado?
HAMLET
Sim; pelo caminho em que vae o mundo, custa achar um homem honrado entre dez mil.
POLONIO
É uma triste verdade.
HAMLET
Ora o sol gera vermes no animal putrefacto, e embora divindade, acaricia o cadaver.
Tens uma filha, não é verdade?
POLONIO
Sim, meu senhor.
HAMLET
Não a deixes caminhar ao sol, a concepção é um beneficio do céu, mas como tua filha
póde conceber, cuidado... meu caro.
POLONIO
Que quer dizer, principe? (á parte) minha filha é a sua constante preoccupação, mas não
me reconheceu logo, tomou-me por um vendilhão de peixe. O seu cerebro está
gravemente atacado; verdade é, que na minha mocidade o amor algumas vezes me
reduziu a um estado similhante a este. Dirijâmos-lhe de novo a palavra. Que está lendo,
senhor?
HAMLET
Palavras e mais palavras, só palavras.
POLONIO
De que se trata, senhor?
[48]
HAMLET
Quem, o que?
POLONIO
Pergunto o que contém o livro que está lendo.
HAMLET
Calumnias, nada mais. O satyrico auctor tem a impudencia de dizer que nos velhos a
barba é grisalha, a pelle rugosa, e que seus olhos distillam ambar e gomma em fusão;
que o espirito está caduco, as pernas não os sustêem; tudo cousas que creio em minha
consciencia, mas que se não devem escrever. Quanto ao senhor, poderia ter a minha
idade, se podesse andar para trás como os caranguejos.
POLONIO (á parte)
Aindaque louco póde coordenar as idéas. (Alto.) Quer vir tomar ar, meu senhor?
HAMLET
Que ar? o do tumulo?
POLONIO (á parte)
Que agudeza e que verdade na replica. Ás vezes as palavras dos loucos têem mais
conceito que as dos sãos. Vou deixal-o, e preparar a sua entrevista com minha filha.
Senhor, tomo a liberdade de me retirar.
HAMLET
Nada podia tomar, que eu désse com mais gosto; excepto a vida, excepto a vida, excepto
a vida.
POLONIO
Adeus, meu senhor.
HAMLET (á parte)
Que imbecil e fastidioso velho.
Entram ROSENCRANTZ e GUILDENSTERN
POLONIO
Procuram o sr. Hamlet, eil-o.
ROSENCRANTZ (a Hamlet)
Deus seja comvosco, senhor. (Polonio sáe)
[49]
GUILDENSTERN
Meu nobre senhor.
ROSENCRANTZ
Querido principe.
HAMLET
Meus bons e queridos amigos, como estão, tu Guildenstern e tu tambem Rosencrantz,
meus caros, como passam.
ROSENCRANTZ
Nem bem, nem mal.
GUILDENSTERN
Não nos peza demasiado a nossa felicidade, e não tocâmos o ponto culminante da
fortuna.
ROSENCRANTZ
Nem temos tambem rasões de queixa.
HAMLET
No meio está a virtude, é quando chovem as graças.
GUILDENSTERN
Vivemos familiarmente com ella.
HAMLET
Estão pois na intimidade da fortuna; não me admira, é uma cortezã. Que novas ha?
ROSENCRANTZ
Nenhumas, senhor, a não ser que este mundo se tornou virtuoso.
HAMLET
Em tal caso o seu fim está mui proximo, mas o que dizes é falso. Permittam-me uma
pergunta que lhes diz respeito. Digam-me, que mal fizeram á fortuna para ella os enviar
para este carcere?
GUILDENSTERN
Carcere, senhor?
HAMLET
A Dinamarca tambem é carcere.
ROSENCRANTZ
Então é-o o mundo todo.
[50]
HAMLET
Sim, uma vasta prisão que em si encerra um grande numero de carceres, dos quaes o
peior é de certo a Dinamarca.
ROSENCRANTZ
Não somos da mesma opinião, principe.
HAMLET
Para os senhores não será uma prisão a Dinamarca, porque o bem ou o mal não existem
senão quando assim o julgâmos. Para mim é.
ROSENCRANTZ
A ambição faz parecer a Dinamarca uma prisão a vossa alteza, não cabe n'ella a sua
alma.
HAMLET
Acharia vasto reino uma casca de noz, se não fossem os meus terriveis sonhos.
ROSENCRANTZ
São justamente esses sonhos que constituem a ambição, porque toda a substancia do
ambicioso é a sombra de um sonho.
HAMLET
Assim os mendigos são corpos, e os monarchas e os heroes ambiciosos não são senão a
sua sombra. Querem que vamos á côrte? porque sinceramente não me sinto disposto a
discutir.
AMBOS
Estamos ás suas ordens, principe.
HAMLET
Não o comprehendo eu assim, não o quero confundir com o resto dos meus creados;
porque, para lhes dizer a verdade, sou pessimamente servido. Mas, com franqueza,
amigos, o que os trouxe a Elsenor.
ROSENCRANTZ
Unicamente visitar a vossa alteza, nenhum outro motivo.
HAMLET
Estou tão pobre, tão alheio ao reconhecimento! mas recebam os meus agradecimentos
pelo preço que valem. Não os [51] mandaram chamar? Foi por motu proprio que
vieram? É a affeição que aqui os trouxe? Vamos, sejam francos, vamos, fallem.
ROSENCRANTZ
Que quer que digâmos, senhor?
HAMLET
Tudo quanto lhes aprouver, mas respondam á minha pergunta. Mandaram-os chamar?
Leio nos seus olhos uma confissão, que a sua candura não sabe dissimular. Sei que o
nosso bom rei e a nossa excellente rainha os mandaram chamar.
ROSENCRANTZ
Com que fim, senhor?
HAMLET
Os senhores é que o poderão dizer; mas imploro-lhes, pelos direitos da nossa amisade,
pelas sympathias da nossa idade, pelos deveres que nos impõe a nossa verdadeira
affeição, emfim por todas as rasões as mais convincentes que podesse allegar o mais
habil orador, sejam francos e sinceros commigo; mandaram-os chamar? Sim ou não.
ROSENCRANTZ (a Guildenstern)
Que devemos responder?
HAMLET (á parte)
Não os perderei de vista. (Alto.) Se devéras me têem affeição, expliquem-se com
franqueza.
GUILDENSTERN
Pois bem, senhor, mandaram-nos chamar.
HAMLET
E eu dir-lhes-hei porque; d'est'arte a minha confissão precederá as suas investigações, e
o segredo promettido ao rei e á rainha, não será nem de leve violado. Ultimamente, nem
sei por que, perdi toda a minha alegria, renunciei a toda a especie de exercicio; e sinto
na alma uma tal tristeza, que esta maravilhosa machina, a terra, me parece um esteril
promontorio, este esplendido docel, o céu, esse magnifico firmamento suspenso sobre
nossas cabeças, essa abobada sumptuosa, onde [52] brilha o oiro de innumeras estrellas,
tudo me parece um infecto monturo de vapores pestilentes. Que obra prima dos
homens! que elevação na sua intelligencia! quanto são infinitas as suas faculdades!
como a sua fórma é imponente e admiravel, como os seus actos approximam os homens
dos anjos, e a sua rasão os approxima de Deus! são a maravilha do mundo, os reis da
creação animada, e comtudo o que vale a meus olhos essa quinta essencia do pó?
Aborreço os homens e as mulheres, embora os seus sorrisos incredulos, senhores, digam
o contrario.
ROSENCRANTZ
Não tinhamos em nosso pensamento tal intenção.
HAMLET
Então porque se riram quando disse que aborrecia os homens?
ROSENCRANTZ
É que eu pensava que, se os homens lhe são odiosos, triste acolhimento receberiam os
actores que encontrámos no caminho e que vem offerecer a vossa alteza os seus
serviços.
HAMLET
Bemvindo será o que representa os reis; tributarei a sua magestade as minhas
homenagens; o cavalleiro andante manejará adaga e escudo, debalde não suspirará o
namorado, o comico declamará em paz a sua parte; o bobo provocará o riso aos mais
hypocondriacos, emfim a namorada estropiará os versos para não deixar de dizer o que
cumpre sinta no coração. Que actores são?
ROSENCRANTZ
São os tragicos da cidade, que lhe agradavam tanto.
HAMLET
Porque se tornaram actores ambulantes? Com a permanencia na cidade, auferiam de
certo maior honra e lucros.
ROSENCRANTZ
Innovações recentes foram a causa d'isso.
HAMLET
Ainda gosam da mesma reputação que tinham quando eu [53] habitava a cidade? As
suas representações ainda são muito concorridas?
ROSENCRANTZ
Pouco, senhor.
HAMLET
Porque será? Terão elles desmerecido no seu modo de representar?
ROSENCRANTZ
Não, meu senhor; o seu zêlo não arrefece: mas vossa alteza de certo saberá, que
appareceu um enxame de creanças, apenas saídas da primeira infancia, que declamam o
dialogo o mais simples, no tom o mais elevado, e por isso são calorosamente
applaudidas. São moda, e lançaram um tal desfavor sobre os actores ordinarios, como
ellas lhe chamam, que muitos homens valentes no campo da batalha, mas que temem as
pennas aguçadas, não ousam frequentar o verdadeiro theatro.
HAMLET
Como? pois são creanças? Quem as protege? quem lhes paga? quererão unicamente
seguir a sua profissão emquanto conservarem a sua voz aflautada? E se um dia pela
força das circumstancias se tornarem actores ordinarios, não terão direito então de se
arrependerem, de terem acceitado os encomios das pennas que bem mau serviço lhes
prestaram, quando se voltarem contra elles as armas de que se serviram para mal dos
outros.
ROSENCRANTZ
Não luctaram pouco entre si, e a nação inteira animou a contenda. Houve um momento
em que a receita do emprezario dependia de brigarem os actores e auctores.
HAMLET
Será crivel?
ROSENCRANTZ
Houve mais de uma cabeça quebrada.
HAMLET
E foram as creanças que venceram?
ROSENCRANTZ
Sim, meu senhor. Venceram o proprio Hercules com o seu globo.
[54]
HAMLET
Nada me admira, sendo meu tio rei de Dinamarca. Os que o evitavam em vida de meu
pae, pagam agora o seu retrato em miniatura, por vinte, cincoenta e cem ducados. Por
vida minha que ha alguma cousa sobrenatural em tudo quanto presenceâmos, e que em
verdade a philosophia devia esmerar-se por descobrir. (Ouve-se o som de uma musica
de clarins ao longe.)
GUILDENSTERN
Chegam os actores.
HAMLET
Senhores, bemvindos sejam em Elsenor. As suas mãos que eu as aperte. O que distingue
um bom acolhimento são os cuidados e as attenções polidas; deixem-me recebel-os
assim para não parecer que a cortezia para com os actores, com os quaes é minha
intenção ter a maior, ultrapassa a que lhes testemunho pessoalmente aos senhores.
Bemvindos sejam, mas o tio que tenho por padrasto, e a mãe que tenho por tia estão
completamente enganados a meu respeito.
GUILDENSTERN
Em que se enganam elles?
HAMLET
Só estou louco quando o vento sopra do nor-noroeste, em soprando do sul, distingo uma
garça de um falcão.
Entra POLONIO
POLONIO
Saudo os senhores.
HAMLET
Escuta, Guildenstern, (a Rosencrantz) e tu tambem: a bom entendedor meia palavra
basta; esta creança que vêem ainda usa coeiros.
ROSENCRANTZ
Talvez que os torne a usar; a velhice é, segundo dizem, uma segunda infancia.
HAMLET
Aposto que me vem fallar nos actores; vão ver. Tem rasão, senhor, foi effectivamente
na manhã de segunda feira.
[55]
POLONIO
Trago uma nova para vossa alteza.
HAMLET
Tenho tambem uma para o senhor. Quando Roscio era actor em Roma...
POLONIO
Os actores acabam de chegar.
HAMLET
Não é verdade.
POLONIO
Palavra de honra.
HAMLET
Cada actor virá montado n'um jumento.
POLONIO
São os melhores actores do mundo para a tragedia, comedia, drama historico e pastoril,
pastoral comica e historica, pastoral tragico-comico-historica, com ou sem unidade do
logar da acção. Para elles não ha difficuldades, são tristes com Seneca, folgasãos com
Plauto. Não têem rivaes quanto ao estylo e á expressão.
HAMLET
Ó Jephthé, juiz em Israel, que thesouro possuias!
POLONIO
Que thesouro possuia elle, senhor?
HAMLET
Mas...
Uma filha, uma só, mas essa encantadora
Que era da noite sua a celestial aurora.
POLONIO (á parte)
Ainda minha filha.
HAMLET
Não tenho eu rasão, velho Jephthé?
POLONIO
Se me chama Jephthé, é porque tenho uma filha que estremeço.
[56]
HAMLET
Não é consequencia.
POLONIO
Então qual é a consequencia?
HAMLET
Eil-o.
Mas Deus sabe porque o conto é memoravel!
Conhece o seguimento?
Um dia aconteceu... o que era mais provavel.
Para o final recorde-se da primeira parte d'estas trovas, porque eis quem me obriga a
terminar.
Entram tres ou quatro ACTORES
HAMLET (continuando)
Bemvindos todos, bemvindos sejam. Estou encantado de te ver de boa saude,
bemvindos sejam, amigos. Ah, meu amigo, que mudança! já com barba! Quererás tu
fazer-me sombra em Dinamarca? Ah eis-vos tambem aqui, minha menina! Por nosso
senhor, depois que vos vi, subistes apenas um degrau para o céu. Deus queira que a
vossa voz, moeda de liga mutavel, não se deprecie de mais com o tempo. Senhores, para
mim são todos bemvindos; mas vamos direitos ao assumpto, como os falcoeiros
francezes, que largam o falcão á primeira peça de caça que se apresenta, mostrem-me a
sua pericia; vamos, um trecho bem pathetico.
PRIMEIRO ACTOR
Que trecho preferis, senhor?
HAMLET
Ouvi-te um dia declamar um trecho de uma peça nunca representada em scena, ou
quando muito uma unica vez, porque, se bem me lembro, a peça não agradou a todos;
era caviar para o geral do publico: mas, segundo a minha opinião e das pessoas que
n'este assumpto têem voz mais auctorisada do que a minha, era uma peça excellente,
bem conduzida e escripta com tanta decencia como arte. Pelo que me lembro, diziam
que os versos não eram bastante picantes para compensar a [57] insipidez da acção, seu
estylo na verdade nada tinha de affectado, mas que quanto ao resto a peça, escripta com
tanta simplicidade como methodo, era natural, agradavel, e sem pretensão. Havia
sobretudo um trecho que me agradou, era, na falla de Eneas a Dido, o ponto em que lhe
refere a morte de Priamo. Se ainda te recordas, começa n'esta phrase, espera, deixa-me
ver se me lembro.
Pyrrho, Pyrrho feroz como o tigre da Hyreania
Não é issocomeça por Pyrrho.
Este ouriçado Pyrrho havia uma armadura
Que, bem como a alma, tinha a côr da noite escura
Quando elle era a dormir no cavallo sinistro.
Mensageiro do mal, de Belzebut ministro,
No corpo traz agora, em rubros caracteres,
Mais sinistro brazão; da fronte aos pés o cora
O sangue d'anciãos, d'infantes, de mulheres,
E por mil bôcas, mata a sêde que o devora
No sangue recosido aos raios d'essa chamma
Que Troia, em fogo ardendo, em torno a si derrama.
Tisnado pelo fogo e pela raiva ardente
Após Priamo corre...
Continúa tu agora.
POLONIO
Boa declamação na verdade, com as medidas e intonações proprias.
PRIMEIRO ACTOR
O velho, já cansado,
Mal vibra um frouxo golpe; aquella espada, outr'ora
Como o raio veloz, lá onde cae descansa,
Indocil á vontade, e á mão rebelde agora,
Oh lucta desigual! lucta sem esperança,
Pyrrho de raiva acceso, investe em frente e ao lado!
E, só do gladio ao sôpro eil-o no chão prostrado
O guerreiro senil! Então, Troia abatida
Parece haver sentido, os golpes derradeiros:
Ao ver prostrado o rei exhaure-se-lhe a vida,
Desabam sobre a base em chammas os outeiros,
E o som cavo e profundo a Pyrrho fere o ouvido.
Eis de repente o gladio, a grande altura erguido,
Já prestes a immolar a fronte alva, nevada,
Do venerando rei, detem-se lá na altura.
E Pyrrho assim parece um tyranno em pintura,
Suspenso entre a vontade e a obra começada!
Mas como, muita vez, pouco antes da procella
Se faz como que ouvir um silencio que gela,
[58] Pára a nuvem no céu, o vento não retumba,
E a terra a nossos pés é muda como a tumba;
Subitamente após se vê no fundo baço
Um raio que illumina e rasga o immenso espaço,
Assim de Pyrrho a furia, instantes mal contida,
Irrompe a completar a obra interrompida.
Dos Cyclopes jamais caíram retumbantes
Com remorso menor os malhos flammejantes
Para forjar de Marte a gravida armadura,
Que sobre o nobre velho, ensanguentada, impura,
De Pyrrho a espada ardente!... É finda a horrenda lucta!
Atrás, fortuna, atrás, atrás, vil prostituta!
Vós, deuses immortaes, em synodo sagrado,
Roubae-lhe o audaz poder, quebrae todos os raios
Ás rodas do seu carro, e lá do céu lançae-os
Tão baixo que o demonio os veja sempre ao lado.
POLONIO
Parece-me demasiado longo.
HAMLET
Para o encurtar manda-se a um barbeiro ao mesmo tempo que a tua barba. (Ao actor.)
Continúa, peço-to eu; se não lhe apresentam um bailado grutesco, ou uma scena
immoral adormece logo. Continúa, pois, chegámos a Hecuba.
PRIMEIRO ACTOR
Mas quem visse, oh, quem visse a rainha embuçada!
HAMLET
A rainha embuçada.
POLONIO
Optimo, embuçada é bom.
PRIMEIRO ACTOR
Correndo, nus os pés; com lagrimas que chora
As chammas, apagando; a fronte coroada
Por um farrapo vil, a fronte onde ainda agora
Brilhava um diadema; apenas mal vestida
Por coberta alcançada á pressa na fugida;
Quem visse tanto horror, acaso concebêra
Que a fortuna só tem entranhas de uma fera;
Mas se os deuses do Olympo houvessem escutado,
Quando ella vira Pyrrho entregue ao estranho goso
De cortar membro a membro, o corpo ao morto esposo,
De seu peito fremente, o grito amargurado
A não ser que da terra ao céu não suba a magua
Sentiriam como ella os olhos rasos d'agua!
[59]
POLONIO
Vejam, empallidece, o pranto inunda-lhe os olhos. Basta, peço-to.
HAMLET
Está bem, o resto m'o recitarás n'outra occasião; (a Polonio) queira prover que estes
actores sejam bem tratados, percebeu? que nada lhes falte, porque são a chronica
resumida e viva da epocha. Mais lhe valeria, Polonio, um mau epitaphio depois da sua
morte, do que o seu vituperio em vida.
POLONIO
Tratal-os-hei segundo os seus merecimentos.
HAMLET
Melhor, meu caro, melhor; se se tratasse cada um segundo os seus merecimentos, de
poucos se faria caso. Trate-os como o deve á jerarchia e á sua propria dignidade.
Quantos menos titulos tiverem á sua benevolencia, mais se deve esmerar no seu
tratamento. Agora póde-se retirar com elles.
POLONIO
Venham, senhores.
HAMLET
Sigam-o, meus amigos, ámanhã teremos a representação, (Polonio sáe com os actores,
menos um a quem Hamlet faz signal que fique.)
HAMLET (continuando)
Dize-me, meu caro amigo, poderias representar a morte de Gonzaga?
PRIMEIRO ACTOR
Com mil vontades, senhor.
HAMLET
Então ámanhã. Dize-me mais, poderias tu aprender de cór, sendo preciso, doze ou
dezeseis linhas que eu desejava intercalar na peça? pódes, não é verdade?
PRIMEIRO ACTOR
Posso perfeitamente, meu senhor.
[60]
HAMLET
Fica pois ajustado, segue aquelle senhor, e só te peço que não zombes d'elle. (O actor
sáe.)
HAMLET (a Rosencrantz e Guildenstern)
Meus bons amigos, até á noite, estimei vel-os em Elsenor.
ROSENCRANTZ
Meu senhor. (Sáe com Guildenstern.)
HAMLET
Finalmente estou só. Que miseravel eu sou! Pois não será monstruoso que este actor,
n'uma ficção, na expressão de uma dor simulada, podesse elevar a sua alma,
identificando-se com a sua parte, exaltando-se a ponto de empallidecer, de lhe borbulhar
o pranto nos olhos, de se lhe pintar o desespero nas feições, entrecortada está a sua voz,
e o seu todo faz uma verdade, de que não é senão uma situação fingida! E tudo, por
quem? por Hecuba; que é Hecuba para elle, ou elle para Hecuba, para que a sua
memoria lhe arranque lagrimas tão sentidas? Que faria elle no meu logar, se tivesse
tantos motivos de dor, quantos eu tenho. Inundava de pranto a scena, aterrava os
espectadores pela sua expressão terrivel, fulminava o culpado, atemorisava o innocente;
attonitas ficavam as almas simples, e a commoção aos sentidos da vista e do ouvido
seria geral. E eu, alma tibia, intelligencia confusa, fico n'uma estupida inacção,
indifferente á minha propria causa, e nada acho que dizer, nada, mesmo nada a favor de
um rei que perdeu a corôa e a vida pelo mais inaudito attentado! Ah como sou cobarde!
Infame me deveriam chamar, esbofetear-me, arrancar-me as barbas, lançar-m'as ao rosto
com o desprezo; insultar-me deveriam todos, dizer-me que pela gorja menti, e obrigarme
a soffrer calado todos os vilipendios possiveis. Quem quer fazel-o. Por vida minha
que era justo; é forçoso que eu seja inoffensivo como uma pomba sem fel, para levantar
uma offensa, para não ter feito pasto dos abutres as entranhas d'esse miseravel,
sanguinario e impudico scelerado. Monstro de perfidia, juntas ao assassinio o adulterio!
Como sou estupido! É bello na verdade ver-me, a mim, o filho de um rei e pae
assassinado, a quem céus e terra instigam á vingança, gastar a minha indignação em
palavras e vãs imprecações, como a [61] mais vil e desprezivel prostituta. Que
vergonha!! Procuremos Uma idéa... (depois de uma pausa prolongada) Eil-a, achei.
Ouvi dizer que criminosos, assistindo a representações dramaticas, de tal modo se
perturbaram vendo a sua culpa em scena, que espontanea e immediatamente fizeram
confissão do seu crime, porque o assassino embora mudo trahe-se e falla. Quero que os
actores representem, na presença de meu tio, a morte de meu pae, observarei as suas
feições, sondarei as suas impressões; se se perturbar, sei o que me cumpre fazer. O
espirito que me appareceu talvez seja um demonio, porque póde revestir-se da fórma de
um objecto amado, tem poder sobre as almas melancholicas, e quem sabe se na minha
fraqueza e dor acha os meios para me perder, condemnando-me para sempre. Quero ter
a certeza completa; o drama em questão será o laço armado á consciencia do rei. (Sáe.)
Fim do acto segundo
[63]
ACTO TERCEIRO
SCENA I
Uma sala no castello de Elsenor
Entram o REI, a RAINHA, POLONIO, OPHELIA, ROSENCRANTZ e
GUILDENSTERN
O REI
Então ainda não poderam, nas suas conversas com elle, descobrir a causa da desordem
da sua intelligencia; d'aquella perigosa e turbulenta demencia que se apoderou do seu
espirito e lhe rouba o descanso?
ROSENCRANTZ
Confessa sentir esvaír-se-lhe a rasão; mas não conseguimos que elle nos revelasse a
causa.
GUILDENSTERN
Parece pouco disposto a deixar sondar os seus sentimentos. Na sua loucura não o
abandona um resto de sagacidade; conserva-se na defensiva todas as vezes que tentâmos
encaminhal-o a uma confissão tocante ao seu estado.
A RAINHA
Recebeu-os bem ao menos?
ROSENCRANTZ
Com toda a affabilidade de um homem bem educado.
[64]
GUILDENSTERN
Mas evidentemente constrangido.
ROSENCRANTZ
Perguntando pouco, mas respondendo ás nossas perguntas com a maior naturalidade.
A RAINHA
E experimentaram algum divertimento para o distrahir?
ROSENCRANTZ
O acaso fez-nos encontrar no caminho alguns actores; fallámos-lhe n'elles, esta nova
pareceu agradar-lhe. Estão aqui no palacio, e creio já terem recebido ordem para
representarem esta noite na sua presença.
POLONIO
É verdade, e pede a vossas magestades que assistam á representação.
O REI
Com o maior prazer; estimo vêl-o assim disposto. Queiram estimulal-o, senhores, e
dirigir a actividade do seu espirito para estes divertimentos.
ROSENCRANTZ
Assim o faremos. (Sáe com Guildenstern.)
O REI
Deixa-nos tambem, querida Gertrudes. Mandámos chamar secretamente a Hamlet, para
como por acaso o pôr na presença de Ophelia. Seu pae e eu, legitimos espias, collocarnos-
hemos de maneira que, sem sermos vistos, assistamos á entrevista e possamos
julgar pelas suas palavras, se é um amor infeliz que assim o faz padecer.
A RAINHA
Obedeço retirando-me. Quanto a ti, Ophelia, desejo ardentemente que os teus encantos
sejam a feliz causa da demencia de Hamlet; porque terei então esperança que as tuas
virtudes o restituirão, a contento de ambos, ao primitivo estado.
OPHELIA
Quanto o desejo, senhora.
[65]
POLONIO
Ophelia, passeia aqui n'esta sala; (ao rei) vamo-nos collocar, senhor; (a Ophelia) lê
n'este livro; esta leitura simulada servirá de pretexto á tua solidão. Enganâmo-nos tantas
vezes, e quão frequentemente acontece, com uma capa de santidade e attitude reservada
conseguirmos fazer um santo do proprio demonio!
O REI
Oh é bem verdade; que pungente dor esta observação inflige á minha consciencia! O
rosto da prostituta não é mais asqueroso debaixo da mascara do seu arrebique, do que o
é o meu crime debaixo do falso verniz do meu discurso. Oh peso terrivel!
POLONIO
Hamlet approxima-se, retiremo-nos, senhor. (O rei e Polonio occultam-se atrás da
cortina.)
Entra HAMLET
Ser ou não ser, eis o problema. Uma alma valorosa, deve ella supportar os golpes
pungentes da fortuna adversa, ou armar-se contra um diluvio de dores, ou pôr-lhes fim,
combatendo-as? Morrer, dormir, mais nada, e dizer que por esse somno pomos termo
aos soffrimentos do coração e ás mil dores legadas pela natureza á nossa carne mortal; e
será esse o resultado que mais devamos ambicionar? Morrer, dormir, dormir, sonhar
talvez; terrivel perplexidade. Sabemos nós porventura que sonhos teremos, com o
somno da morte, depois de expulsarmos de nós uma existencia agitada? E não deverei
eu reflectir? É este pensamento que torna tão longa a vida do infeliz! Quem ousaria
supportar os flagellos e ultrages do mundo, as injurias do oppressor, as affrontas do
orgulhoso, as ancias de um amor desprezado, as lentezas da lei, a insolencia dos
imperantes, e o desprezo que o ignorante inflige ao merito paciente, quando basta a
ponta de um punhal para alcançar o descanso eterno? Quem se resignaria a supportar
gemendo o peso de uma vida importuna, se não fosse o receio de alguma cousa alem da
morte, esse ignoto paiz, do qual jámais viajante regressou? Eis o que entibia e perturba a
nossa vontade; eis o que nos faz antes supportar as nossas dores presentes do que
procurar outros males que não conhecemos. Assim, somos cobardes todos, mas pela
consciencia; assim a brilhante côr da [66] resolução se transforma pela reflexão em
pallida e livida penumbra, e basta esta consideração para desviar o curso das emprezas
mais importantes, e fazer-lhes perder até o nome de acção. Mas silencio, vejo a linda
Ophelia. Joven beldade, lembra-te dos meus peccados nas tuas orações.
OPHELIA
Como tem vossa alteza passado estes dias ultimos?
HAMLET
Bem, agradeço-te do coração.
OPHELIA
Senhor, tenho dadivas e lembranças suas que ha muito lhe desejava restituir. Permittame
que lh'as devolva.
HAMLET
Eu! de certo que não, nunca te dei nada.
OPHELIA
O principe sabe perfeitamente que me fez essas dadivas, e as doces palavras que as
acompanharam ainda lhes realçaram o valor; agora que perderam todo o seu perfume,
tome-as, principe, porque para uma alma nobre, as mais ricas dadivas perdem o seu
valor, no momento em que aquelle que nol-as fez só nos mostra indifferença. Receba-as,
pois, senhor.
HAMLET
Ah, ah, és virtuosa.
OPHELIA
Meu senhor.
HAMLET
És bella.
OPHELIA
Que diz vossa alteza?
HAMLET
Digo que se és virtuosa e bella, deves evitar toda a communicação entre a tua virtude e a
tua belleza.
OPHELIA
Que melhor commercio ha para a belleza que o da virtude?
[67]
HAMLET
A influencia da belleza será mais prompta em metamorphosear a virtude em vil cortezã,
do que a força da virtude em transformar a belleza á sua imagem. Antigamente seria
paradoxo, hoje é um facto provado. Amei-te n'outro tempo, é verdade.
OPHELIA
Vossa alteza bem m'o fez acreditar.
HAMLET
Fizeste mal em acreditar. Porque embora a virtude se inocule na nossa primitiva
natureza, sempre nos ficam restos d'ella. Nunca te amei.
OPHELIA
Maior foi o meu engano.
HAMLET
Professa, Ophelia, encerra-te n'um claustro. Para que queres continuar uma raça de
peccadores; quanto a mim julgo-me ainda assás honesto; e comtudo podia formular
contra mim taes accusações, que melhor teria valido, que minha mãe me não tivesse
dado á luz. Sou orgulhoso, vingativo e ambicioso; gero no meu cerebro tantas acções
más, que o meu pensamento não basta para as distinguir, nem a minha imaginação para
lhes dar uma fórma, e falta-me o tempo para as executar. Que vantagem haverá pois que
seres como eu se rojem como reptis entre o céu e a terra? Todos somos infames, não te
fies em nenhum homem; vae, recolhe-te a um claustro. Onde está teu pae?
OPHELIA
Em casa, meu senhor.
HAMLET
Que lhe fechem as portas para impedir que represente de louco fóra de casa. Adeus.
OPHELIA
Deus misericordioso, tende piedade de Hamlet.
HAMLET
Se alguma vez te casares, dar-te-hei como dote esta triste verdade. Sê tu fria como o
gêlo; se fores pura como a neve a calumnia não te poupará. Entra para um claustro,
professa, adeus. [68] Mas se absolutamente precisas um marido, então escolhe um
louco, porque os homens assisados sabem em que monstros vós as mulheres os tornaes.
Professa, recolhe-te a um convento, mas avia-te. Adeus.
OPHELIA
Poderes celestes, restitui-lhe a rasão!
HAMLET
Tambem ouvi fallar da vossa loquacidade. Deus deu-vos um porte e vós o transformaes
por vossa culpa. Saltitaes, requebrae-vos; gestos e affabilidade são artificio, zombaes
das creaturas de Deus, e fazeis passar por ignorancia o que é simples e pura affectação.
Nem quero pensar em vós, mulheres; foi o que me enlouqueceu. Digo que não teremos
mais casamentos, todos que estão casados viverão, excepto um, os outros ficarão como
estão. Professa, entra para um convento, vae. Adeus. (Hamlet sáe.)
OPHELIA (só)
Oh que nobre intelligencia está ali desthronada. A perspicacia do homem de côrte, a
espada do guerreiro, a palavra do sabio, o futuro d'este reino, o espelho do bom tom, o
typo dos modos nobres, o modelo em que todos fictavam os olhos, tudo destruido e
destruido sem esperança; e eu, a mais afflicta e infeliz das mulheres, eu que saboreei a
inebriante ambrosia dos seus juramentos de amor, estou condemnada a ver essa potente
e elevada rasão, similhante ao bronze fendido, não dar senão sons falhos e dissonantes;
e tanta belleza e juventude crestadas pelo sôpro da demencia! Oh infeliz, oh desgraçada,
que vi o que vi, e vejo o que vejo!!!
Sáem de trás da cortina o REI e POLONIO
O REI
O amor! não é a ella que elle dedica a sua affeição; alem d'isso o seu fallar, aindaque um
pouco falto de logica, não tem cunho de loucura. Ha na sua alma alguma dor secreta.
Receio algum perigo que nos seja fatal. Para prevenir esse resultado, eis o plano que
formei e no qual assentei. Quero que Hamlet parta sem demora para Inglaterra, para
reclamar o tributo a que esse paiz se nega e a que é obrigado. Talvez que o mar, a
mudança de clima, a vista de objectos novos, lhe restituam [69] a rasão, expulsando do
seu coração aquella obstinada preoccupação. Que lhe parece?
POLONIO
Parece-me acertado. Comtudo persisto na minha idéa, que um amor desprezado é a
causa unica da sua dor. (A Ophelia) Não precisas referir-nos o que te disse o sr. Hamlet.
Tudo ouvimos. (Ao rei) Senhor, faça o que lhe parecer conveniente, mas se me quer dar
ouvidos, diga á rainha, que, depois da representação, o chame a sós e inste para
conhecer d'elle a causa da sua mágua; porém cumpre que lhe falle severamente: com o
vosso assentimento ouvirei escondido toda a conversação. Se a rainha não podér
penetrar aquelle espirito rebelde a toda a confidencia, ordene-lhe então a partida, e
desterre-o, senhor, para o logar que a prudencia lhe dictar.
O REI
Concordo plenamente comtigo; nos grandes é que a demencia deve ser mais vigiada.
(Sáem todos.)
SCENA II
Uma sala no castello de Elsenor
Entram HAMLET e differentes actores
HAMLET (a um dos actores)
Não esqueças de dizer aquelle trecho, tal qual o declamei na tua presença; mais que tudo
fogo e energia; mas se o recitares como a maior parte dos actores, mais me valeria ouvir
a minha prosa na bôca de um pregoeiro. Não movas descompassadamente os braços,
acciona moderadamente; no meio mesmo da torrente, da tempestade, do tufão, da
paixão, procura ser comedido. Nada impressiona mais desfavoravelmente, do que ver
homens robustos reduzirem a pó uma paixão e escorchar os ouvidos dos assistentes,
que, pela maior parte, não merecem senão uma declamação absurdamente arrebatada e
uma acção desordenada. Açoutados mereciam esses actores, cujo accionado mais parece
renhida batalha, e que mais crueis se fingem que um Herodes de comedia. Peço-te que
evites esses defeitos.
[70]
PRIMEIRO ACTOR
Pela minha parte, prometto-lh'o, senhor.
HAMLET
Não vás tambem caír no excesso contrario, sirva-te de guia a tua intelligencia.
Accommoda a acção ás palavras, as palavras á acção, tendo sempre em vista a
naturalidade; só é proprio da scena intelligente, que foi e é o espelho em que se deve
reflectir a natureza, mostrar a virtude tal qual é, a vaidade sem véu, e cada tempo e cada
idade com a sua physionomia propria e com o cunho de verdade. Se se excede, ou se
fica áquem do fim proposto, poderá excitar-se a hilaridade do homem ignorante, mas
afflige-se o sensato, cujo juizo vale mais que o suffragio de uma sala inteira. Oh! vi
representar e ouvi elogiar actores, que, Deus me perdôe, nada tinham de christão na voz,
nada de christão, pagão ou mesmo humano no porte, e que se estorciam e bramavam de
tal modo, que sempre os julguei obra de algum aprendiz da natureza, que, querendo
fabricar homens, errou a vocação, e não tinha produzido senão uma desgraçada imitação
da humanidade.
PRIMEIRO ACTOR
Espero em Deus, que vossa alteza não nos poderá notar taes defeitos; entre nós, senhor,
estão banidas de todo as exagerações.
HAMLET
Mas que o estejam na verdade; que os bobos não digam mais do que ao que são
obrigados pela sua parte; alguns ha que introduzem alguma facecia para excitar o riso
dos espectadores ignaros no ponto em que mais attenção se reclama da parte do publico.
É um desacerto, e o bobo que recorre a esses expedientes, mostra uma pretensão
desgraçada. Vão-se agora preparar. (Os actores sáem.)
Entram POLONIO, ROSENCRANTZ e GUILDENSTERN
HAMLET (a Polonio)
Então o rei está decidido á nossa peça?
POLONIO
Com certeza, e a rainha tambem. Não tardam.
[71]
HAMLET
Diga então aos actores que se aviem. (Polonio sáe.)
HAMLET (continuando, a Rosencrantz e Guildenstern.)
Querem fazer-me o favor de tambem ir apressar os preparativos.
AMBOS
Sim, meu senhor. (Sáem.)
Entra HORACIO
HAMLET
Ah, és tu, Horacio?
HORACIO
Estou sempre ás suas ordens, meu senhor.
HAMLET
Meu caro Horacio, és a flor dos homens, cujo trato tenho cultivado.
HORACIO
Meu querido senhor.
HAMLET
Não julgues que te lisonjeio; que posso eu esperar de ti, cujas unicas rendas são a
jovialidade e a honestidade. Quem lisonjeia um pobre? Não, que a lisonja roja-se aos
pés da opulencia estupida, e o servilismo curva o joelho, á espera do comprador. Escuta,
depois que a minha alma pôde livremente escolher e soube distinguir os homens,
marcou-te com o sêllo da predilecção, porque reconheceu em ti um homem que não se
abate pelos revezes; um homem que acceita com a mesma indifferença os favores e os
rigores da fortuna; felizes os mortaes em quem o juizo e as paixões têem igual imperio,
e não são um joguete nas mãos da fortuna. Mostrem-me um homem que não seja
escravo das paixões, e terá conquistado, como tu, o meu coração, e abrir-lhe-hei o
santuario da affeição mais íntima. Basta sobre o assumpto. Deve-se hoje representar na
presença do rei um drama, no qual ha uma scena, que é a historia da morte de meu pae,
cujos pormenores já em tempo te contei. Quando se approximar a scena, observa meu
tio, com toda a vigilancia que auctorisam as minhas suspeitas; se o segredo do seu crime
se não revelar por alguma palavra, então [72] era a apparição obra do demonio, e as
minhas imaginações são mais negras que as lavas e cinzas de um vulcão. Tu observa-o
attentamente, eu não o perderei de vista; depois, juntando os nossos juizos,
concluiremos conforme ao que virmos.
HORACIO
Muito bem, senhor, tão firme estarei no meu posto de observação, que juro por Deus,
que me não escapará um movimento, uma impressão da sua alma.
HAMLET
Eil-os que chegam para a representação; agora, cumpre-me ser espectador indifferente.
(Ouve-se a marcha real e clarins.)
Entram o REI, a RAINHA, POLONIO, OPHELIA, ROSENCRANTZ,
GUILDENSTERN e a CORTE
O REI
Como passa nosso sobrinho Hamlet?
HAMLET
Melhor não póde ser; em verdade passei a viver como os camaleões, nutro-me só de ar,
e alimento-me de promessas, as iguarias mais finas não me satisfariam melhor.
O REI
A tua resposta é-me inintelligivel; não é de certo a mim que ella é dirigida.
HAMLET
Pois nem a mim. (A Polonio.) Não me disse que já tinha representado uma vez, quando
cursava a universidade?
POLONIO
É verdade, senhor, e era reputado um habil actor.
HAMLET
Que parte representou?
POLONIO
A de Julio Cesar; assassinaram-me no capitolio; Bruto apunhalava-me.
[73]
HAMLET
Que brutalidade apunhalar, e n'aquelle logar, um tão excellente bezerro. Os actores já
estão promptos?
ROSENCRANTZ
Sim, meu senhor, esperam só as ordens.
A RAINHA
Vem, meu Hamlet, sentar-te a meu lado.
HAMLET
Não, minha mãe; (mostrando Ophelia) este metal tem mais força de attracção.
POLONIO
Que me diz agora, senhor?
HAMLET
Ser-me-ha permittido estar a vossos pés, senhora? (Senta-se no chão aos pés de
Ophelia.)
OPHELIA
Não, meu senhor.
HAMLET
Queria dizer, recostar a cabeça sobre vossos joelhos.
OPHELIA
Sim, meu senhor.
HAMLET
Pensaveis talvez que tivesse outra idéa?
OPHELIA
Nada pensava.
HAMLET
É um pensamento este digno de um coração de donzella.
OPHELIA
O que, senhor?
HAMLET
Nada.
OPHELIA
Vejo-o hoje alegre, senhor.
[74]
HAMLET
Quem, eu?
OPHELIA
Sim, vossa alteza.
HAMLET
Sou o seu bobo e nada mais. Cousa alguma ha melhor para o homem do que a alegria.
Repare, veja como minha mãe está hoje muito alegre, e ainda não ha duas horas que
meu pae morreu.
OPHELIA
Vossa alteza engana-se por certo; ha mais de duas vezes dois mezes.
HAMLET
Tanto tempo!! n'esse caso use o demonio o lucto, eu quero vestir-me de arminhos. Oh
céus, morto ha dois mezes, e ainda não esquecido, não é então de estranhar que a
recordação de um grande homem dure mais de seis mezes; mas, pela Virgem Santa,
deve então ter edificado igrejas, aliás arriscava-se a que o esquecessem, como aquelle a
quem lavraram este epitaphio:
Aqui jaz esquecido um cavallo de pau.
Soam os clarins, começa a pantomima
(Um rei e uma rainha entram em scena, o seu aspecto é de namorados, abraçam-se. A
rainha ajoelha aos pés do rei, mostrando pelos seus gestos que lhe protesta o mais vivo
amor. O rei levanta-a, e inclina a cabeça sobre o seu hombro; depois deita-se n'um
banco coberto de flores. A rainha vendo-o adormecido, sáe. Apparece um personagem
que lhe tira a corôa e a leva aos labios, lança veneno n'um ouvido do rei, e sáe em
seguida. Volta a rainha, acha o rei morto, e dá mil signaes de desespero. O envenenador
seguido por duas ou tres pessoas, chega e parece lamentar-se com a rainha. O cadaver é
levado da scena. O envenenador requesta a rainha, dá-lhe presentes. Ella mostra a
principio repugnancia, mas acaba por acceitar o amor offerecido. Sáem.)
OPHELIA
Que significa esta scena, senhor?
HAMLET
Nada que seja bom, é um laço armado ao crime.
OPHELIA
Esta pantomima indica sem duvida o entrecho da peça?
[75]
Entra o PROLOGO
HAMLET
Vamos sabel-o, os comediantes não podem guardar um segredo, têem por costume fallar
sempre.
OPHELIA
Explicará elle o que significa a pantomima?
HAMLET
Sem duvida, não só essa, mas todas as que lhe quizer apresentar, qualquer que seja a sua
especie, e terá a explicação prompta.
OPHELIA
O principe é mau, deixe-me seguir a peça.
O PROLOGO
Pedimos, para nós, toda a vossa indulgencia;
Para a nossa tragedia, attenta paciencia.
HAMLET
Parece antes divisa de annel do que prologo.
OPHELIA
Tão curto, senhor.
HAMLET
Como o amor de uma mulher.
Entram um REI e uma RAINHA
O REI DA PEÇA
Trinta vezes de Phebo o carro luminoso
De Tellus e Neptuno, o largo giro ha feito,
E trinta vezes doze a lua, astro saudoso,
De refrangida luz, á terra ha dado o preito,
Desde que as nossas mãos, com mutuo amor se deram,
E as bençãos d'Hymeneu o sacro nó teceram.
A RAINHA DA PEÇA
Possamos lua e sol, ver outras tantas vezes,
Antes que d'este amor se rompa o doce laço;
Mas seguem-se á ventura as maguas, os revezes,
E vejo-vos caído, ha pouco, em tal cansaço,
Tão triste, meu senhor, tão triste e tão mudado,
Que não posso esconder mais tempo o meu cuidado.
[76] Mas que não se perturbe o vosso animo forte
Porque inquieta eu sou, e ousei pensar na morte.
De affecto e de anciedade igual medida temos,
Ou nullos um e o outro, ou um e o outro extremos.
Se é grande o meu amor, demais senhor o vêdes,
Que a par anda o receio, em minha fronte o lêdes.
Sempre que o amor é grande, as apprehensões mais breves
Transformam-se de prompto em maximos temores;
Quando é grande o receio, os affectos mais leves
Ascendem de repente aos mais grandes amores.
O REI DA PEÇA
Bem cedo é força, amor, que d'este mundo eu parta,
Bem vês, d'esta alma a luz já quasi que se aparta.
Tu viverás sem mim, sob este céu formoso,
Querida, idolatrada e sempre honesta e casta.
Depois, talvez depois, quem sabe? um novo esposo...
Um homem justo e bom...
A RAINHA DA PEÇA
Oh! basta, senhor, basta!
Seria um novo amor perfidia negra e infame.
Amaldiçoado seja o dia em que outro eu ame!
Embora justo e bom, segundo companheiro
Não n'o acceita ninguem, sem ter morto o primeiro.
HAMLET
Isto é absintho, e que absintho!
A RAINHA DA PEÇA
Poisque motivo arrasta a viuva ao casamento?
Acaso um novo amor? um nobre sentimento?
Um sordido interesse: e eu cravára no peito
De meu morto senhor a ponta de uma espada,
Cada vez que, olvidando a antiga fé jurada,
Compartisse outro ser commigo o mesmo leito.
O REI DA PEÇA
Creio bem, que pensaes o que dizeis, se creio?!
Mas quanta, oh! quanta vez, se quebra a acção no meio,
Nasce a resolução escrava da memoria,
Producto da violencia, é curta a sua historia.
A fructa emquanto verde em qualquer ramo atura
Mas, sem abalo algum, tomba apenas madura.
Fatalmente olvidando o que a nós nos devemos
Não pagâmos jámais, a divida esquecemos.
O que durante a dor parece a eternidade,
Mal extincta a paixão, cessa de ser vontade.
O jubilo e o martyrio, ainda os mais completos,
Destruindo-se a si, destroem seus decretos.
Onde o prazer mais ri, mais chora a dor pungente;
Entristece a alegria, alegra-se a tristeza,
[77] Á causa mais subtil, ao mais leve accidente,
E este um dom fatal da vária natureza.
Passâmos pelo mundo, e nada aqui tem dura
Que até o proprio amor muda com a ventura;
Porque é problema ainda occulto aos pensadores
Se dá o amor fortuna, ou se a fortuna amores.
Um principe decáe? somem-se os que os adulam;
Um mendigo se eleva? os amigos pullulam.
Até aqui o amor seguiu sempre a fortuna;
Quem não precisa encontra em toda a parte amigos,
E quem precisa e pede, é lepra que importuna,
Todos transforma e muda em feros inimigos,
Mas para concluir, escuta o corollario:
A vontade e o destino, andam tanto ao contrario
Que o mais leve projecto é sempre letra morta.
Assim crês, não terás jamais outro marido;
Pois abra-me o sepulchro a sua eterna porta
E tudo irá sumir-se em um perpetuo olvido.
A RAINHA DA PEÇA
Negue-me a terra o pão, e a luz o firmamento!
O meu goso maior transforme-se em tormento!
Minha esperança e fé tornem-se em negro inferno!
Seja a fome em prisão o meu futuro eterno!
Não tenha eu, viva ou morta, o mais curto repouso,
Se, viuva uma vez, tomar um outro esposo!
HAMLET
E se lhe acontecer violar o juramento?
O REI DA PEÇA
Solemne juramento!... Amor, deixa-me agora;
Exhausta sinto a fronte, e bom grado entregára
Os restos d'este dia á paz consoladora
Dos braços de Morpheu. Adeus! Oh! sempre cara. (Adormece.)
A RAINHA DA PEÇA
Que um somno brando e doce embale a tua mente
E a desgraça jamais entre nós dois se assente!... (Sáe a rainha.)
HAMLET
Senhora, como acha esta peça?
A RAINHA
A rainha parece-me que faz demasiados protestos.
HAMLET
Mas dada a palavra, não póde faltar.
[78]
O REI
Conhece a peça? não contém nada reprehensivel?
HAMLET
Absolutamente nada; tudo quanto contém é só gracejo, até se envenena por gracejo. É a
peça mais inoffensiva que póde haver.
O REI
Que titulo tem?
HAMLET
O Laço, já se sabe, por metaphora. O assumpto da peça é um assassinio commettido em
Vienna. O rei chama-se Gonzaga, sua mulher Baptista. Vae ver, um crime horrivel. Mas
que importa a vossa magestade e a mim, que temos a consciencia pura e que nada temos
a receiar! O peior é para aquelles a quem punge algum espinho, a nós nada nos pesa na
consciencia.
Entra LUCIANO
HAMLET (continuando)
É este um chamado Luciano, sobrinho do rei.
OPHELIA
Vossa alteza faz o serviço do côro.
HAMLET
Podia até servir de ponto n'uma conversa sua com o seu amante; o caso era eu ver
manobrar os dois titeres.
OPHELIA
Sois na verdade mordaz, principe; sois bem mordaz.
HAMLET
A sua pena seria que eu deixasse de o ser.
OPHELIA
De bem para melhor, de mal para peior.
HAMLET
É a sorte que a espera na escolha de um marido! Começa, [79] assassino. Põe de parte
esses horriveis tregeitos, avia-te, começa.
Eis o corvo que avança,
Chamando em seu grasnar a lugubre vingança.
LUCIANO
O pensamento negro, o braço bem disposto,
A droga preparada, a hora favoravel,
Cumplice a occasião, a ver nem um só rosto.
Mistura infecta e immunda, extracto abominavel
De peçonhenta sarça á meia noite achada,
Tres vezes polluida e tres envenenada
D'Hecate á maldição, possa a tua virtude
Fechar uma existencia, e abrir um ataúde.
(Deita veneno n'um ouvido do rei adormecido.)
HAMLET
Envenena-o no jardim, para se apoderar da corôa. O nome do rei é Gonzaga; é uma
historia authentica escripta no mais elegante italiano. Verão como logo o assassino
obtem o amor da mulher de Gonzaga.
OPHELIA
O rei levantou-se.
HAMLET
Quê!! um pequeno clarão apenas, já o assusta?
A RAINHA
Que tem, senhor?
POLONIO
Cesse a peça.
O REI
Tragam luzes. Saiâmos.
POLONIO
Luzes, venham luzes, luzes. (Todos sáem, excepto Hamlet e Horacio.)
HAMLET
Sim! que fuja e que chore o cervo mal ferido,
E o que ao golpe escapou, gose um prazer profundo.
Quando um chora, outro ri. Oh! sempre assim ha sido,
E assim é feito o mundo.
Se alguma vez a fortuna me maltratar, não bastaria uma scena de effeito como esta,
acrescentando-lhe um chapéu ornado de pennas, e duas rosas de Provença nos laços dos
sapatos, para que me admittissem n'uma companhia dramatica.
[80]
HORACIO
Talvez o admittissem, mas com meia paga.
HAMLET
Ou inteira.
Porque sabes, Damon, bem sabes tu que outr'ora
Mandava n'este reino, que vês hoje aviltado,
Qual Jupiter no Olympo, um grande rei... agora
Governa aqui... um chavo.
HORACIO
Foi pena não rimar.
HAMLET
Meu querido Horacio, aposto mil libras esterlinas, em como a sombra fallou só a
verdade. Reparaste?
HORACIO
Em tudo reparei, senhor.
HAMLET
Quando se tratava do envenenamento?
HORACIO
Tudo observei.
HAMLET
Ah! ah! ah! quero musica, tanjam as charamelas.
Porque, se da comedia o rei não gosta nada,
Sei eu dar a rasão... não gosta, está dada.
Venha a musica, quero muita musica. (Entram Rosencrantz e Guildenstern.)
GUILDENSTERN
Senhor, permitta-me que lhe dê uma palavra.
HAMLET
Mil até, se n'isso fizer gosto.
GUILDENSTERN
Senhor... o rei...
HAMLET
Que é?... que me vem dizer d'elle?
GUILDENSTERN
Retirou-se aos seus aposentos, estranhamente indisposto.
[81]
HAMLET
Pelo vinho?
GUILDENSTERN
Não, senhor, mas pela colera.
HAMLET
Mais assisado seria terem chamado um medico. Eu não faria senão exacerbar a sua
colera com a minha presença.
GUILDENSTERN
Queira, senhor, ter mais nexo nos seus discursos, e não se afastar assim tão bruscamente
da questão.
HAMLET
Escutal-o-hei tranquillamente. Falle.
GUILDENSTERN
A sua rainha e mãe me envia a vossa alteza.
HAMLET
Bemvindo seja.
GUILDENSTERN
Senhor, essa polidez é mal cabida n'esta occasião. Se me promette responder
rasoavelmente, executarei então as ordens de sua mãe, quando não, retiro-me pedindo
desculpa a vossa alteza.
HAMLET
Não posso.
GUILDENSTERN
O que, meu senhor?
HAMLET
Responder rasoavelmente; a minha intelligencia enfermou, no emtanto dar-lhe-hei uma
resposta, ou antes como ordena a minha mãe, a melhor que podér. Diga-me agora, que
pretende de mim a rainha?
ROSENCRANTZ
Encarregou-nos de lhe dizer, principe, que o seu comportamento lhe causou espanto e
dor.
HAMLET
Ah! sou pois um filho tão extraordinario que causo espanto e dor a minha mãe! Nada
mais lhe disse? Fallem.
[82]
ROSENCRANTZ
Deseja fallar-lhe, alteza, no seu quarto, antes de o principe se deitar.
HAMLET
Obedecer-lhe-hemos, aindaque fosse dez vezes nossa mãe. Tem mais alguma cousa a
dizer?
ROSENCRANTZ
Houve tempo em que o principe era meu amigo.
HAMLET
Ainda hoje o sou, juro-o por estes dez dedos.
ROSENCRANTZ
Senhor, qual é a causa da sua dor profunda? É impor-se um constrangimento inutil,
guardar esse segredo para comnosco, que somos tão seus amigos.
HAMLET
Inquieta-me o meu futuro!
ROSENCRANTZ
Como póde isso ser, pois o rei já o escolheu para successor ao throno de Dinamarca?
HAMLET
É verdade; mas guardado está o bocado... o proverbio é antigo.
Entram differentes actores cada um com uma charamela
HAMLET
Ah! chegam as charamelas, dá-me uma. (Tira a charamela a um dos actores.) Quer que
o acompanhe? então deixe de me perseguir como o caçador persegue a caça.
GUILDENSTERN
Se o meu zêlo, senhor, me faz obstinado, é porque a affeição me torna importuno.
HAMLET
Não o posso comprehender, faz-me favor de tocar n'esta charamela.
[83]
GUILDENSTERN
Senhor, eu não sei!
HAMLET
Peço-lhe.
GUILDENSTERN
Creia-me, senhor, não posso.
HAMLET
Supplico-lhe.
GUILDENSTERN
Se nunca soube tocar tal instrumento!
HAMLET
Pois mais difficil é mentir. Com os quatro dedos e o pollegar tapam-se e destapam-se
por sua vez os orificios; sopre, e verá que encantadora harmonia produz. Vamos.
GUILDENSTERN
Mas, senhor, eu não posso nem sequer tirar um som d'este instrumento; falta-me o
talento.
HAMLET
Que especie de imbecil me julga então? Sou a seus olhos um instrumento de que
pretende tirar sons, e que parece conhecer tão bem. Pretende sondar até ao fundo da
minha alma, para descobrir o meu segredo; queria então fazer vibrar todas as cordas do
meu sentimento. D'este pequeno instrumento (Mostrando-lhe a charamela) tiram-se sons
e notas as mais melodiosas; e comtudo nas suas mãos não póde fallar. Pela Virgem
santa, sou então mais facil de tocar do que uma flauta? O que lhe asseguro é que se me
julga um instrumento nas suas mãos, nunca conseguirá fazel-o fallar. Está muito
enganado commigo.
Entra POLONIO
HAMLET (continuando)
Guarde-o Deus.
POLONIO
Senhor, a rainha deseja fallar-lhe immediatamente.
[84]
HAMLET (approximando-se de uma janella)
Vê acolá aquella nuvem que tem quasi a fórma de um camello?
POLONIO
Não ha duvida, dir-se-ia effectivamente um camello.
HAMLET
Parece-se mais com uma doninha.
POLONIO
É verdade! tem o feitio da doninha.
HAMLET
Ou de uma baleia?
POLONIO
Realmente, com o que se parece é com uma baleia.
HAMLET
Agora vou ter com minha mãe, hão de acabar por enlouquecer-me devéras. Vou já.
POLONIO
Vou communical-o á rainha. (Polonio sáe.)
HAMLET
Já! É facil dizel-o. Deixem-me sós, meus amigos. (Sáem todos excepto Hamlet.)
HAMLET (só)
É esta a hora da noite propria dos mysterios da magia, a hora em que os tumulos se
abrem, em que o inferno exhala sobre a terra o seu sopro contagioso; agora sinto-me
capaz de beber sangue ainda fumegante, e commetter actos que o dia consternado não
poderia presencear sem terror! Prudencia! Vamos ao quarto de minha mãe. Oh! meu
coração, não dispas o teu vigor; firmeza agora, mas que o coração de Nero nunca entre
em meu peito. Sejamos inflexiveis, mas não filho desnaturado; seja a minha lingua um
punhal, mas minha mão esteja desarmada; e n'esta occasião sejam a minha bôca e o meu
coração obrigados pela rasão a dissimular. Por mais violentas que sejam as minhas
palavras, dae-me força, meu Deus, para que sejam sempre comedidas, assim como os
meus actos. (Sáe.)
[85]
SCENA III
Um quarto no castello de Elsenor
Entram o REI, ROSENCRANTZ e GUILDENSTERN
O REI
Ha n'elle alguma cousa que me desagrada, e creio que haveria perigo para nós em não
vigiar a sua loucura; façam pois todos os preparativos de viagem. Vou dar as ordens, e
quero que parta sem demora para Inglaterra acompanhado pelos senhores. O interesse
da nossa corôa me veda o expor-me aos continuos perigos com que a sua demencia me
ameaça.
GUILDENSTERN
Vamo-nos preparar. É um receio santo e salutar o que tem por objecto assegurar a
salvação de innumeras existencias, que depende da vida de vossa magestade.
ROSENCRANTZ
É um dever que toca a cada um na sua esphera individual, o applicar todas as suas
forças e toda a energia para defender a propria vida contra qualquer ataque; quanto mais
obrigado a fazel-o é aquelle de cuja vida dependem tantas existencias! Quando um rei
morre, não morre só, é um turbilhão que attrahe tudo quanto encontra no caminho, ou
lhe fica proximo: roda colossal fixada no cume de uma elevada montanha, cujos
gigantescos raios estão carregados de innumeros accessorios, e cuja quéda os impelle
forçosamente a um desastre commum. Quando o rei padece, padecem todos.
O REI
Preparem-se, peço-lh'o, para uma partida immediata, porque estamos resolvidos a pôr
um termo ás causas de inquietação que demasiado livremente se dão n'este paiz.
AMBOS
Não nos faremos esperar. (Sáem.)
[86]
Entra POLONIO
POLONIO
Senhor, Hamlet entrou agora para o quarto de sua mãe; occultar-me-hei cuidadosamente
para ouvir a sua conversa. Asseguro a vossa magestade que a rainha o vae reprehender
severamente. É conveniente, como el-rei muito bem disse, que outros ouvidos que não
sejam os de mãe, naturalmente propensos á indulgencia, ouçam o que se disserem
mutuamente. Adeus, meu senhor; virei aos seus quartos antes que vossa magestade se
recolha, e o rei será sabedor de tudo quanto se passou.
O REI
Obrigado, Polonio. (Polonio sáe.)
O REI (só)
O meu crime já não tem perdão no céu, está marcado pelo estigma da maldição divina,
como o foi o primeiro fratricida. Apesar de todos os meus desejos, não posso orar;
pareço um homem que duas occupações reclamam, e que, não sabendo por qual optar,
não escolhe nenhuma. Poisque, quando sobre esta mão maldita se formasse uma crosta
de sangue mais espessa que a propria mão, não teria o céu bastante misericordia para
que a onda da sua graça a purificasse e a tornasse branca como a neve? Para que serve a
bondade divina, senão para remir as nossas culpas? De que vale a oração, se não tem a
dupla virtude de prevenir a nossa quéda, ou obter o perdão depois d'ella? Dirijâmos as
nossas supplicas ao céu, já que não podemos evitar o crime consummado. Mas, infeliz,
como hei de orar? Perdoae-me, Senhor, o meu crime nefando. Não posso, poisque
possuo os objectos que me induziram ao assassinio, corôa, throno e consorte. Poder-seha
obter o perdão, quando se conservam os fructos do crime? N'este mundo corrompido,
a iniquidade póde a preço de oiro desviar o curso da justiça, e com o producto do crime
comprar a impunidade; mas o céu é justo, todo o subterfugio é inutil; ali os nossos actos
são justamente avaliados e os nossos crimes conhecidos. Que devo fazer? Nada me
resta. Tentemos o arrependimento. Grande é a sua efficacia; mas que póde n'aquelle a
quem mesmo o arrepender-se é vedado? Oh! deploravel condição, oh! consciencia negra
como a morte, oh! minha alma, não tens perdão, e quanto [87] mais te esforçares por
obtel-o, mais aggravas a tua situação. Anjos do céu, vinde em meu auxilio, tentae um
esforço supremo. Dobrae-vos, joelhos rebeldes. E tu, meu coração, que as tuas fibras de
aço voltem ao estado primitivo das do recem-nascido. Ainda me resta esta ultima
esperança. (Retira-se a um lado da scena, ajoelha e ora.)
Entra HAMLET
HAMLET (vendo o rei)
A occasião é propicia, está orando. Coragem, Hamlet. Sim, mas salvar-se-ía a sua alma,
e não é essa a minha vingança desejada. Reflictâmos; um scelerado assassina meu pae, e
eu, seu filho unico, abro as portas do céu a esse infame! Seria uma recompensa e não
um castigo. Assassinou meu pae, entregue ás preoccupações da carne, quando seus
peccados mais vivazes estavam, como as flores na primavera; e quem sabe, a não ser o
céu, que contas daria ao Creador? as penas eternas, de certo, não o pouparam. Seria uma
vingança immolar este scelerado, quando a sua alma deve estar pura, quando está
preparado para a sua ultima viagem? Não! Entra na tua bainha, minha espada, e espera
para ferir, golpe mais terrivel e justo. Quando estiver ebrio ou adormecido, ou
encolerisado, ou immerso nos prazeres de um leito incestuoso, ou absorvido pelo jogo,
ou blasphemando, ou praticando algum acto contrario á salvação da sua alma, então
fere, que as penas do inferno serão poucas para um tal crime. (Olhando para o rei.)
Prolonga ainda os teus dias enfermos: adiar não é desistir. (Sáe.)
O REI
Sobem as minhas palavras, o pensamento não, e as palavras sem o pensamento não
chegam ao céu. (Sáe.)
SCENA IV
Um quarto no castello
Entram a RAINHA e POLONIO
POLONIO
O sr. Hamlet não tarda. Reprehenda-o asperamente; diga-lhe que os seus atrevimentos
excedem os limites da paciencia, [88] e que vossa magestade já teve que se interpor
entre elle e a colera do rei. Nada mais digo, senhora, peço só que falle com firmeza.
A RAINHA
Fallar-lhe-hei com firmeza, esteja descansado. Afaste-se, ouço os seus passos. (Polonio
esconde-se.)
Entra HAMLET
HAMLET
Que me quer, minha mãe?
A RAINHA
Hamlet, offendeste gravemente teu pae.
HAMLET
Minha mãe offendeu gravemente meu pae!
A RAINHA
Como insensato fallas.
HAMLET
A rainha falla como culpada!
A RAINHA
Que queres tu dizer, Hamlet?
HAMLET
O que é, senhora?
A RAINHA
Esqueces quem eu sou?
HAMLET
Pela cruz do Redemptor, que não. Rainha é, foi esposa do irmão de seu marido, e
prouvera a Deus que não o fosse, mas é minha mãe!
A RAINHA
Mandar-te-hei alguem que melhor do que eu te saiba fallar.
HAMLET
Vamos, sente-se, minha mãe. Não se moverá, não saírá d'aqui emquanto eu não tiver
posto diante dos seus olhos um espelho em que possa ver até ás profundidades da sua
alma.
[89]
A RAINHA
Que pretendes de mim? queres tu porventura assassinar-me? Acudam á rainha, acudam!
POLONIO (por detrás do reposteiro)
O que é! olá, soccorro!
HAMLET (desembainhando a espada)
Que é isso? Um rato? (Dando-lhe uma estocada.) Aposto um ducado em como o matei!
POLONIO (atrás do reposteiro)
Mataram-me, eu morro. (Cáe para fóra do reposteiro e morre.)
A RAINHA
Que fizeste, infeliz?
HAMLET
Ignoro-o; seria o rei? (Levanta o reposteiro e puxa pelo cadaver de Polonio.)
A RAINHA
Que acto de crueldade e de sangue!
HAMLET
De sangue; quasi tão reprehensivel, minha mãe, como assassinar um rei e desposar o
irmão!
A RAINHA
Assassinar um rei?
HAMLET
Sim, um rei, foi o que eu disse. (A Polonio.) Quanto a ti, pobre diabo, louco, temerario e
indiscreto, as nossas contas estão ajustadas, aprendeste á tua custa o perigo que corre
quem se intromette nos negocios dos outros. (Á rainha.) Cesse de estorcer-se. Silencio,
sente-se, quero torturar o seu coração, e fal-o-hei, se ainda possue alguma sensibilidade,
e o habito do crime não a bronzeou a ponto de ser insensivel a toda a especie de
emoção.
A RAINHA
Que fiz eu, Hamlet, para que me falles n'esse tom ameaçador?
[90]
HAMLET
Uma acção que mancha o rubor e a graça do pudor; que transforma a virtude em
hypocrisia; que arranca á fronte innocente do amor a sua corôa de rosas, e a substitue
por uma chaga asquerosa; que torna os juramentos do hymeneu tão falsos como os do
jogador! Oh! uma acção que rouba ao corpo dos contratos a santidade, que é a sua alma,
e faz da religião uma rapsodia de palavras. Indigna-se o céu, contrista-se o globo solido
e compacto, lê-se-lhe nas faces a consternação como se fosse o ultimo dia do mundo.
A RAINHA
Qual é pois a acção que denunciam este ameaçador preludio e esta expressão
fulminante?
HAMLET (mostrando dois retratos em pé que ornam as paredes)
Veja bem esses dois retratos, são as imagens de dois irmãos. Veja que graça impressa
n'estas feições: o cabello annellado de Apollo; a fronte do proprio Jupiter; o olhar de
Marte, onde se lê a commando e a ameaça; o porte de Mercurio, o mensageiro celeste,
quando apenas pousa o alado pé sobre o cimo das nuvens; uma tão feliz reunião das
fórmas perfeitas, que cada um dos deuses parecia ter contribuido com o seu quinhão,
como se quizessem mostrar ao mundo o modelo do verdadeiro homem! Esse era o seu
primeiro esposo. Volva agora os olhares para este lado. Eis o que é o seu segundo
esposo! que, similhante á espiga mangrada, pelo seu contacto causa a morte a sua irmã a
espiga sã. E saberá ver? Como pôde então abandonar as ferteis e salubres collinas, para
se immergir n'este immundo paul!! Se ainda tem olhos, senhora, não póde imputar ao
amor o seu comportamento; na sua idade já se acalmou a effervescencia do sangue, e a
paixão obedece á rasão. E qual seria a creatura racional, que ousasse trocar o seu
primeiro marido por este segundo? É sem duvida dotada de sensibilidade, aliás não seria
um ser animado; mas na senhora estão paralysados todos os sentimentos, porque não ha
demencia que não deixe ao que verga sob o seu peso uma porção bastante de
discernimento, para saber escolher entre objectos tão dissimilhantes. Que demonio a
perturbou a ponto de lhe vendar os olhos? A vista sem o tacto, o tacto sem o auxilio da
vista, o ouvido sem o uso das mãos e dos olhos, o olfato só por si, [91] uma porção
mesmo alterada de um verdadeiro sentido, não podiam ter-se enganado tão
estultamente. Oh! vergonha! onde está o teu rubor? Inferno rebelde, que assim pódes
atear a revolta nos sentidos de uma mulher, ha muito esposa e mãe. Que admira que,
para a ardente juventude, a virtude seja como a cera, que se derrete á chamma que
alimenta; que não seja vergonha ceder quando nos arrasta a paixão, poisque o proprio
crystal se funde e a rasão prostitue aos desejos os seus vergonhosos serviços.
A RAINHA
Oh! Hamlet, cessa por piedade, obrigas o meu olhar a volver-se todo para a minha alma,
e n'ella descubro máculas tão negras e tão profundamente impressas, que nada já as
póde lavar.
HAMLET
Viver no suor impuro de um leito infecto, sobre o esterco da corrupção, revolver-se no
lodaçal de um asqueroso amor.
A RAINHA
Cala-te, Hamlet, as tuas palavras são outras tantas punhaladas. Piedade! querido filho!
HAMLET
Um assassino, um scelerado, um miseravel, que não vale a centesima parte do seu
primeiro marido, um rei de comedia, um ladrão, que empalmou o poder, e que achando
a corôa debaixo de mão, a roubou e a metteu no bolso!
A RAINHA
Hamlet!
HAMLET
Um palhaço!
Entra a SOMBRA
HAMLET
Protegei-me e abrigae-me sob vossas azas, anjos do céu. (Á sombra) Que pretendes de
mim, sombra querida?
A RAINHA
Infeliz! enlouqueceu.
[92]
HAMLET (á sombra)
Vens tu reprehender a tibieza de teu filho, que, deixando passar o tempo, arrefecer a sua
indignação, não se apressou em cumprir os teus terriveis preceitos? Falla!
A SOMBRA
Recorda-te que o unico fim d'esta minha apparição é atear em ti o fogo da resolução.
Mas vê, tua mãe está succumbida, interpõe-te entre ella e os seus remorsos; é nas mais
debeis organisações que mais estragos causa a imaginação. Falla-lhe tu, Hamlet.
HAMLET
Como se sente, minha mãe?
A RAINHA
Eu é que te devia fazer essa pergunta! Por que está teu olhar fito no espaço? por que
conversas com seres immateriaes? Teu olhar indefinido revela a lucta da tua alma; como
um soldado acordado em sobresalto; teus cabellos, como se a vida os animasse,
levantam-se e ouriçam-se sobre a tua fronte. Oh! meu querido filho, apaga a chamma da
tua colera, com as tranquillas e limpidas aguas da paciencia! Mas para onde olhas tu?
HAMLET
É elle! Elle! Como está pallido! O seu aspecto, e o motivo que aqui o traz,
commoveriam as proprias pedras. (Á sombra) Descrava de mim os teus olhos, receio
que me feneça a resolução, vendo teu triste e commovente olhar; que se transforme o
caracter dos meus actos talvez em lagrimas em vez de sangue.
A RAINHA
Mas, filho, a quem fallas assim?
HAMLET
Não vê nada, minha mãe?
A RAINHA
Nada, senão tudo quanto existe n'esta camara.
HAMLET
E nada ouviu?
[93]
A RAINHA
Cousa alguma, a não ser as tuas palavras.
HAMLET
Mas olhe, minha mãe, não vê como elle se afasta, triste e pensativo? É meu pae, vestido
como trajava em sua vida. Eil-o, transpõe agora mesmo a porta. Saíu. (A sombra sáe.)
A RAINHA
É á exaltação da tua imaginação e ao delirio que de ti se apoderou, que são devidas estas
creações phantasticas.
HAMLET
O delirio! Senhora, apalpe o meu pulso, e conhecerá que não está menos tranquillo que
o seu. Não fallei influenciado pelo delirio. Interrogue-me; em vez de divagar, repetirlhe-
hei textualmente as minhas palavras; não estou louco; engana-se, minha mãe. Por
Deus, não se embale, no pensamento falso, que é o meu delirio e não a sua culpa que me
faz fallar! Seria cicatrizar exteriormente a chaga, que a consciencia nunca deixaria de
augmentar interiormente. Confesse-se ao céu, arrependa-se do passado, premuna-se para
o futuro, e não dê pasto ao verme do remorso, que acabará por totalmente corroer o seu
coração e obliterar a sua consciencia. Perdoe á minha virtude, porque n'este mundo
sordido e venal a virtude deve implorar o perdão do vicio e pedir o favor de poder fazer
o bem.
A RAINHA
Oh! Hamlet! Dilaceras-me o coração.
HAMLET
Expulse a parte corrompida, e com a outra metade viva tranquilla e pura. Boa noite;
evite meu tio, e se não podér ser virtuosa, ao menos pareça-o. O habito, esse monstro,
que destroe e neutralisa em nós toda a sensibilidade, esse demonio do habito, é anjo
n'isto, porque consente á virtude e ás boas acções as suas vestes proprias. Não veja hoje
o seu esposo, tornar-lhe-ha mais facil a abstenção futura; o habito tudo póde, muda a
natureza individual, doma o demonio, e expulsa-o com o seu maravilhoso poder. Boas
noites mais uma vez! e quando sentir a necessidade da benção divina, então [94] pedirlhe-
hei a sua. (Mostrando Polonio.) Quanto a este homem, arrependo-me do que fiz;
mas obedeci ao céu; assim o quiz tornando-me instrumento das suas vinganças,
punindo-o por mim, a mim por elle. Sepultem-no, eu responderei pela morte que lhe
dei! Adeus, pois. Cumpre-me ser cruel por humanidade; o primeiro mal está feito, o
maior ainda ha de vir. Uma palavra ainda.
A RAINHA
Que devo fazer?
HAMLET
Nada do que eu lhe disse! Receba as caricias do avinhado monarcha, preste as suas
faces aos seus osculos, ouça-lhes as palavras de amor; então n'um diluvio de ardentes
osculos, entre as mais lubricas caricias, confesse-lhe, revele-lhe tudo, diga-lhe que
nunca estive louco, que o fingi, faça-lhe essa confidencia. Qual seria a rainha, bella,
sensata e honesta, que hesitasse em confiar áquelle animal immundo e repellente,
asqueroso reptil, tão importantes segredos? Quem guardaria silencio? Ninguem. Depois,
olvidando o bom senso e a discrição, abra a gaiola e deixe voar as avesinhas, e seguindo
o exemplo do bugio da legenda, por simples experiencia, introduza-se na gaiola e rompa
o pescoço caíndo!
A RAINHA
Acredita, Hamlet, que se as palavras se compozessem de fôlgo e o fôlgo de vida, eu não
teria vida para articular as que tu me disseste.
HAMLET
Devo partir para Inglaterra; sabe-o sem duvida, minha mãe?
A RAINHA
Infeliz! Tinha-me esquecido; pois isso está definitivamente determinado?
HAMLET
Ha cartas selladas, e os meus dois companheiros de estudos, nos quaes me fio tanto
como na innocencia dos envenenados dardos das viboras, são os portadores da ordem!
São elles que me hão de aplanar o caminho, e se encarregarão de me conduzir ao laço
armado pela mais negra traição. Deixemos caminhar os acontecimentos. Causa devéras
prazer ver rebentar nas mãos do proprio artifice a bomba que para outrem [95]
preparava. Nada ha, senhora, que nos dê mais gosto do que combater a traição,
contraminando-a pela sagacidade. A morte de Polonio apressará a minha partida.
Levemos o seu cadaver para a camara vizinha. Boas noites, minha mãe. Este
conselheiro está agora verdadeiramente a sangue frio, discreto e grave; em vida era
dotado de estupida garrulice. Agora basta, acabemos por uma vez. Boas noites. Adeus,
minha mãe. (A rainha sáe por um lado, Hamlet pelo outro, arrastando o cadaver de
Polonio.)
Fim do acto terceiro
[97]
ACTO QUARTO
SCENA I
Um quarto no castello de Elsenor
Entram o REI, a RAINHA, ROSENCRANTZ e GUILDENSTERN
O REI
Esses suspiros, esse difficil arfar do peito, tudo deve ter uma causa. Queremos conhecela
e pelos senhores. Onde está nosso filho?
A RAINHA (a Rosencrantz e Guildenstern)
Deixem-nos sós um momento. (Os dois sáem.) (Ao rei) Ah! senhor, que noite esta!
O REI
Que ha de novo, Gertrudes; em que estado achaste Hamlet?
A RAINHA
Tão revolta está a sua rasão, como o mar e o vento, quando entre si luctam, disputando a
sua força. N'um dos seus arrebatamentos do delirio, ouvindo mexer atrás de uma
cortina, exclamou: Um rato, um rato, e desembainhando a espada, cravou-a no peito
d'aquelle excellente ancião.
O REI
Oh! triste acontecimento! Igual sorte teria tido se ali me [98] achasse; livre, corremos o
maior risco, mesmo tu; todos, emfim. Que rasões daremos para explicar este acto
sanguinario? Taxar-nos-hão de imprevidentes, a responsabilidade toda caírá sobre nós;
dirão que deviamos ter isolado esse insensato, mas era tão grande a nossa affeição, que
não comprehendemos o que a prudencia nos aconselhava. Obrámos como um homem
atacado de um mal vergonhoso, que para guardar segredo deixa enraizar-se esse mal e
destruir toda a seiva vital. Onde está Hamlet?
A RAINHA
Pondo em logar seguro o cadaver d'aquelle a quem deu a morte. No meio mesmo da sua
demencia, conserva-se pura e intacta a sua intelligencia, como um metal precioso
encravado em rocha bruta. Rebenta-lhe o pranto ao lembrar-se da acção que commetteu.
O REI
Saiâmos, Gertrudes. Quando o sol tocar o cume das montanhas, já Hamlet deverá ter
embarcado; logo em seguida partirá para Inglaterra. Quanto a esta odiosa acção
precisâmos achar na nossa auctoridade e no nosso engenho alguma desculpa que a
releve aos olhos do mundo. Olá, Guildenstern? (Entram outra vez Guildenstern e
Rosencrantz.)
O REI (continuando)
Meus amigos, procurem pessoas que os ajudem e auxiliem. Hamlet, na sua demencia,
matou Polonio, cujo cadaver levou para fóra da camara de sua mãe. Tratem de descobrir
onde o occultou, encarrego-os d'esta missão. Nada digam que possa irritar Hamlet, e
levem o corpo do infeliz Polonio para a capella; peço-lhes só que se aviem. (Sáem
Rosencrantz e Guildenstern.)
O REI (continuando)
Vamos, Gertrudes, convoquemos os nossos mais doutos amigos, demos-lhe a conhecer
o nosso designio e a desgraça acontecida. Precavendo-nos d'este modo, talvez a
calumnia, que arremessa o seu dardo envenenado de uma extremidade do mundo á
outra, e cujos tiros são tão certeiros, como os do mais perfeito canhão, poupe o nosso
nome, perdendo-se na immensidade do espaço. Saiâmos d'aqui. Na minha alma não
sinto senão perturbação e terror! (Sáem.)
[99]
SCENA II
Outro quarto no castello
Entra HAMLET
HAMLET
Duvido que o encontrem.
VOZES DE FÓRA
Hamlet? senhor Hamlet?
HAMLET
De vagar. Que rumor é este? Quem ousa chamar Hamlet? Ah! eil-os que chegam.
(Entram Rosencrantz e Guildenstern.)
ROSENCRANTZ
Senhor? que fez vossa alteza do cadaver?
HAMLET
Entreguei-o ao pó de que saíu.
ROSENCRANTZ
Mas em que logar para o podermos levantar e depositar na capella?
HAMLET
Não pensem em tal.
ROSENCRANTZ
Que devemos, pois, pensar?
HAMLET
Que pouco me importo com a sua cabeça, mas muito com a minha. Interrogado de mais
a mais por uma esponja! Que resposta lhe póde dar o filho de um rei?
ROSENCRANTZ
É a mim que chama esponja?
HAMLET
A quem havia de ser? sim a ti, que bebes os favores, as [100] recompensas e o poder
real. Mas, no fim de contas, taes officiaes prestam ao monarcha relevantes serviços, são
para elle como o fructo que o bugio conserva na bôca para depois o engulir; quando
necessitar do que tem arrecadado, espreme-os como uma esponja, e ficarão
completamente enxutos.
ROSENCRANTZ
Não comprehendo, senhor!
HAMLET
Estimo muito. As palavras do traficante só tem por domicilio os ouvidos do tonto.
ROSENCRANTZ
Diga-nos onde está o cadaver, e siga-nos á presença do rei.
HAMLET
Onde está o rei existe um corpo, mas o rei não está n'esse corpo. O rei é uma creatura.
ROSENCRANTZ
Uma creatura, senhor?
HAMLET
Uma creatura que nada vale! Conduzam-me á sua presença. Vamos jogar as escondidas.
(Sáem todos.)
SCENA III
Uma sala no castello
Entra o REI com a sua comitiva
O REI
Mandei chamar Hamlet e procurar o cadaver. Que perigo deixar livre um tal homem;
mas não podemos fazer pesar sobre elle todo o rigor das leis. A multidão insensata
estima-o, decidindo-se mais pela vista do que pela rasão; n'estas circumstancias o que
devemos pensar é o castigo dos culpados, nunca o crime só por si. Para prevenir
qualquer descontentamento é forçoso que este precipitado exilio pareça consequencia de
madura reflexão. Para males desesperados [101] remedios energicos, ou nenhuns. (Entra
Rosencrantz.) Então que aconteceu?
ROSENCRANTZ
Nada podemos saber da sua bôca relativamente ao cadaver.
O REI
Onde está Hamlet?
ROSENCRANTZ
No quarto vizinho, esperando debaixo de segura guarda as ordens de vossa magestade.
O REI
Que venha á nossa presença.
ROSENCRANTZ
Olá, Guildenstern. Conduze Hamlet a este aposento. (Entram Hamlet e Guildenstern.)
O REI
Hamlet, onde está Polonio?
HAMLET
N'um banquete.
O REI
N'um banquete?! onde?
HAMLET
Onde não come, mas é devorado. Uma multidão de vermes politicos disputa o seu
cadaver. O verme é o monarcha dos comedores. Engordâmos todas as creaturas para nos
engordarmos, e engordâmo-nos para pasto dos vermes. Um rei gordo e um mendigo
magro são duas iguarias differentes, comtudo hão de ser servidas á mesma mesa. Esta é
a verdade.
O REI
Infelizmente assim é!
HAMLET
É possivel que se pesque, com um verme creado em cadaver real, um peixe, e que se
coma depois o peixe que enguliu o verme.
O REI
Que significam as tuas palavras?
[102]
HAMLET
Nada; apenas as transformações pelas quaes póde passar um rei para penetrar nos
intestinos do pobre.
O REI
Onde está Polonio?
HAMLET
No céu. Mande ali o seu mensageiro procural-o, e se não o achar, procure-o então o rei
no sitio opposto. Em todo o caso se não o acharem até d'aqui a um mez, o olfato o
denunciará junto á escada da galeria.
O REI (á sua comitiva)
Procurem-o já.
HAMLET
Esperal-os-ha com certeza. (Sáe a comitiva do rei.)
O REI
Hamlet, no interesse da tua saude, que nos é tão cara, quanto dolorosa a acção que
commetteste, é forçoso que partas com a maior brevidade; vae, pois, preparar-te. O
navio está prompto e o vento sopra propicio; os teus companheiros esperam-te, e tudo
está disposto para a tua viagem a Inglaterra.
HAMLET
A Inglaterra?
O REI
Sim, Hamlet.
HAMLET
Está bem.
O REI
O mesmo dirias conhecendo todos os meus projectos.
HAMLET
Descubro um anjo que os vê. Mas partâmos para Inglaterra. Adeus, minha querida mãe.
A RAINHA
E teu pae que te estremece?
HAMLET
Não, minha mãe; pae e mãe são marido e mulher, marido [103] e mulher são uma e
mesma carne. Assim, pois, adeus, minha mãe. Vamos para Inglaterra. (Sáe.)
O REI (a Rosencrantz e Guildenstern)
Sigam-o passo a passo, façam-o embarcar promptamente, não ha tempo que perder.
Quero que já esta tarde esteja afastado d'estes sitios. Vão! Tudo quanto respeita a este
negocio foi já expedido e sellado com as nossas armas. Aviem-se, peço-lh'o. (Sáem.)
(Continuando) Rei de Inglaterra, sabes até onde chega o meu poder; as feridas infligidas
pelo ferro dinamarquez ainda sangram, e teu respeito nos presta livre homenagem. Se,
pois, prezas a minha benevolencia, não receberás friamente as ordens soberanas
contidas nas minhas cartas e que exigem a morte de Hamlet. Obedece-me, rei de
Inglaterra, porque Hamlet é febre que requeima o meu sangue, e tu é que me deves curar
d'ella. Não terei um dia de prazer e descanso emquanto não souber a completa execução
das minhas ordens, aconteça o que acontecer. (Sáe.)
SCENA IV
Uma planicie na Dinamarca
Chega FORTIMBRAZ á frente das suas tropas
FORTIMBRAZ (a um dos seus officiaes)
Capitão, saúde da minha parte o rei de Dinamarca e diga-lhe, que, em conformidade
com a sua promessa, Fortimbraz lhe pede livre passagem pelo seu territorio; sabe o
ponto em que nos devemos encontrar. Se sua magestade desejar fallar-me, irei prestarlhe
as minhas homenagens. Diga-lh'o da minha parte.
O OFFICIAL
As suas ordens serão cumpridas, meu senhor!
FORTIMBRAZ (ás suas tropas)
Avancemos em attitude pacifica. (Fortimbraz e as suas tropas afastam-se. O official
fica.)
[104]
Chegam HAMLET, ROSENCRANTZ, GUILDENSTERN e mais pessoas
HAMLET (ao official)
Que tropas são essas, meu amigo?
O OFFICIAL
É o exercito norueguez, senhor!
HAMLET
Qual é o seu destino?
O OFFICIAL
Um ponto do território da Polonia.
HAMLET
Quem o commanda?
O OFFICIAL
Fortimbraz, sobrinho do rei de Noruega.
HAMLET
É contra a Polonia toda, ou só contra um ponto determinado da fronteira que marcham?
O OFFICIAL
Se quer que lhe diga a verdade, marchâmos contra uma parte da Polonia, cuja conquista
será para nós gloria, sem proveito algum. Estou certo que a sua renda não vale cinco
ducados, e se se vendesse ninguem daria mais.
HAMLET
Se assim é, os polacos não devem offerecer resistencia?
O OFFICIAL
Pelo contrario, até já o guarneceram.
HAMLET
Duas mil almas e vinte mil ducados chegarão apenas para tão futil empreza; é um
d'estes abcessos que resultam de uma demasiada e prolongada prosperidade que rebenta
internamente, sem que nada indique exteriormente a sua acção mortal. Obrigado, amigo.
[105]
O OFFICIAL
Deus seja comvosco, senhor. (Afasta-se.)
ROSENCRANTZ
O principe quer que continuemos o nosso caminho?
HAMLET
Póde ir indo, em breve o alcançarei. (Sáem Rosencrantz e Guildenstern.) (Continuando.)
Como sempre tudo me accusa e me excita á tardia vingança. O que é o homem, se o seu
primeiro bem, o maior negocio da sua vida, consiste em comer e dormir! É um animo
brutal, nada mais. Seguramente, que aquelle que nos dotou com essa vasta
comprehensão, capaz de abraçar o passado e o futuro, não nos deu essa intelligencia,
esse admiravel raciocinio, para que ficassemos ociosos e sem emprego. Quer seja
estulto esquecimento, quer cobarde escrupulo, medito demasiado na acção que tenho
que commetter, pensamento composto de uma quarta parte de siso e tres quartas partes
de cobardia. Como me espanto a mim mesmo quando repito: Eis o que devo fazer, já
que me sobram os motivos, tenha eu ao menos vontade, força e energia para o executar.
Incitam-me os mais irrecusaveis exemplos; testemunho este numeroso exercito,
capitaneado pelo seu joven principe, cujo genio intrepido, soprado por uma ambição
divina, affronta, rindo, as eventualidades de um porvir invisivel, expondo uma vida
mortal e incerta, a tudo quanto podem ousar a fortuna, a morte e os perigos, e tudo por
nada, por uma bagatella. A verdadeira grandeza consiste, não só em commover-se com
grandes e poderosas rasões, mas tambem em achar n'uma bagatella rasões de conflicto,
cuja verdadeira causa é o pundonor. Que posição pois a minha, eu que tenho um pae
assassinado, uma mãe deshonrada; eu que tenho tantos motivos de colera e que tudo
deixo adormecer, emquanto que para minha vergonha vejo vinte mil homens, por uma
louca esperança de gloria exporem-se á morte, caminharem para o tumulo, como
caminhariam para o leito; irem combater para conquistar um quinhão de terra
insufficiente para caberem n'elle, e cujo terreno seria uma sepultura acanhada para os
mortos. Ah! quanto se revelam sanguinarios os meus pensamentos, ou então nada.
(Afasta-se.)
[106]
SCENA V
Uma sala no castello de Elsenor
Entram HORACIO e a RAINHA
A RAINHA
Não lhe quero fallar.
HORACIO
Pede-o encarecidamente. Verdade é que ella perdeu a rasão; o seu estado é digno de
compaixão.
A RAINHA
O que pretende ella?
HORACIO
Falla sempre no pae, pretende terem-lhe dito que n'este mundo se commettem bem más
acções, suspira, bate no peito, exaspera-se sem motivo. Profere palavras equivocas e
sem sentido. Nada diz, comtudo quem ao ouvil-a não teria vontade de a comprehender.
Aquelles que a ouvem procuram adivinhar o sentido, e preenchendo as lacunas, tentam
completar o sentido das suas fallas. Vendo os movimentos que faz, acompanhando as
palavras, todos lhe suppõem um pensamento, um sentido, e provavelmente tem-no, mas
de certo bem sinistro.
A RAINHA
É conveniente fallar-lhe, porque poderia impressionar malevola e perigosamente os
espiritos. Que venha. (Horacio sáe.) (Continuando) Ah! minha alma enferma! Será uma
condição do crime, que a menor bagatella pareça sempre a precursora de alguma grande
calamidade? Tal é a desconfiança em uma consciencia culpada, que se trahe a si mesma
com o receio de se trahir.
HORACIO entra com OPHELIA
OPHELIA
Onde está a bella rainha de Dinamarca?
A RAINHA
Ophelia?
[107]
OPHELIA
Como hei de eu conhecer o bem amado
Por entre a multidão?
Pelo chapéu de conchas enfeitado
E pelo seu bordão.
A RAINHA
Infeliz Ophelia! Que significam esses versos?
OPHELIA
Pergunta-mo? Escute então...
Levaram-no bem morto ao cemiterio!
O que tu foste e és!...
Sob a fronte senil myrto funereo,
E fria pedra aos pés!
Ai de mim! (Chora.)
A RAINHA
Ophelia, querida Ophelia?
OPHELIA
Ouça mais, peço-lh'o...
Branca de neve a frigida mortalha...
Entra o REI
A RAINHA
Veja, senhor!
OPHELIA
É como um prado em flor
Baixou á campa a fronte e não a orvalha
Com lagrimas o amor!!
O REI
Como está bella, Ophelia?
OPHELIA
Bem, louvado Deus, dizem que a coruja fôra outr'ora filha de um padeiro. Meu Deus,
nós sabemos o que somos, mas nunca o que poderemos vir a ser. Que Deus abençôe a
sua mesa.
O REI
Recorda-se do pae?
[108]
OPHELIA
Não fallemos mais n'isso, mas se me perguntam o que significa, dir-lhes-hei o que é.
Respondam.
São Valentim! dizes-me a minha sina?
A pé já todos são.
Queres que eu seja a tua Valentina?
Sou virgem, sim ou não?
Ergueu-se elle e vestiu-se; mansamente
Do quarto a porta abriu;
E virgem ella entrou... mas tão sómente
Mulher quando saíu.
O REI
Encantadora Ophelia!
OPHELIA
Em verdade vou terminar sem juramento.
Por Jesus! pela santa caridade!
Quem vale á infeliz?!
Ai! são todos assim na mocidade,
A sorte é quem n'o quiz!
Antes da minha quéda prometteste
Conduzir-me ao altar:
Por Deus o houvera feito... não quizeste.
Quem te mandou entrar?
O REI
Ha quanto tempo é que este infeliz estado se apoderou d'ella?
OPHELIA
Tudo vae bem! É preciso ter paciencia; não posso reter o pranto, pensando que está
debaixo da terra fria e humida. Meu irmão ha de sabel-o, obrigada pelo conselho.
Chegue a minha carruagem. Boa noite, minhas senhoras, boa noite, bellas senhoras,
Adeus, boas noites! (Sáe correndo.)
O REI (a Horacio)
Siga-a, não a perca de vista, vigie-a cautelosamente, peço-lh'o eu! (Horacio sáe.)
(Continuando) Oh! é aquelle o veneno de uma dor profunda, causada pela morte do pae.
Ah! Gertrudes, Gertrudes, quando as dores nos assaltam, nunca é isoladamente, é como
se viessem em tropel. Primeiro a morte do pae, depois a partida de Hamlet, que tão
violentamente decretou o proprio exilio; o povo alvoroçado e descontente, commenta
malevola e [109] insidiosamente a morte de Polonio, e nós obrámos pouco
assisadamente ordenando o prompto enterro; a infeliz Ophelia, inconsciente do seu
estado, está privada da rasão, sem a qual somos simples estatuas, creaturas brutas. Para
cumulo de desgraça esta vale todas as outras, seu irmão voltou secretamente de França,
embrenha-se no labyrintho de noticias, e mantem-se occulto. Não deixará por certo de
haver bôcas malevolas, que por occasião da morte de seu pae, envenenem seus ouvidos
com insinuações perfidas, e a calumnia, na carencia de outro assumpto, não nos poupará
com os seus dardos envenenados e mortiferos. Ah! querida Gertrudes; tudo isto,
similhante a um instrumento de morte, vibra-me mais golpes que os necessarios para
pôr termo á minha vida. (Ouve-se um grande rumor fóra da sala.)
A RAINHA
Que rumor é esse?
O REI
Olá, venha alguem. (Entra um official do palacio.)
O REI (continuando)
Onde estão os meus suissos? Que defendam as portas. Dize-me já o que ha.
O OFFICIAL
Fuja, senhor; o oceano, rompendo os diques, não invade com mais violencia a campina,
do que o joven Laerte, á frente da rebellião, derruba a resistencia dos vossos officiaes. O
povo chama-lhe soberano, e como se fosse no começo do mundo, sem tradições, nem
passado, nem usos, sobre que tudo se firma, ou as tivesse esquecido, exclama: Elejâmos
um rei! Laerte será o nosso rei? Todos se descobrem e agitam os gorros, todas as mãos
applaudem, todas as vozes repetem: Laerte será rei. Viva o rei Laerte!
A RAINHA
Com que prazer esta matilha segue uma pista falsa! Enganam-se! Dinamarquezes
ingratos!
O REI
Entraram á força. (Redobra o rumor. Entra Laerte seguido por muito povo
dinamarquez.)
LAERTE
Onde está esse rei? Senhores, retirem-se para fóra.
[110]
O POVO
Nada! Queremos todos entrar.
LAERTE
Façam o que lhes peço.
O POVO
É justo! é justo! (Sáem.)
LAERTE
Obrigado, senhores; guardem as portas. (Ao rei.) Infame! entrega-me meu pae.
O REI
Socegue, meu caro Laerte.
LAERTE
Se uma só gota do meu sangue não fervesse, essa gota proclamar-me-ía bastardo,
attestaria a deshonra de meu pae, e imprimiria na casta fronte de minha adorada mãe um
estigma indelevel de infamia.
O REI
O que deu azo, Laerte, a uma rebellião, que assumiu proporções tão colossaes? Está
tranquilla, Gertrudes, por nós nada receies; graças ao caracter sagrado que protege os
reis, a traição não lança senão um olhar timido e incerto para o resultado que anhelam
os seus desejos, e os effeitos estão longe de corresponder á sua esperança. Dize-me,
Laerte, o motivo d'esta irritação violenta. Nada receies, Gertrudes. Falla, Laerte.
LAERTE
Onde está meu pae?
O REI
Morreu.
A RAINHA
Mas o rei está innocente.
O REI
Deixa-me interrogal-o á minha vontade.
LAERTE
Como morreu elle? Não admitto duvidas, dispenso juramentos; leve o demonio a fé
jurada, sepultem-se no abysmo a consciencia e a fidelidade. Affrontarei a condemnação,
declaro-o [111] formalmente; renuncio a tudo n'este e no outro mundo, aconteça o que
acontecer, comtanto que vingue de um modo bem patente a morte de meu pae.
O REI
E quem t'o impede?
LAERTE
A minha vontade só e não a do universo inteiro; quanto aos meios de que disponho,
empregal-os-hei de modo que com recursos limitados tire d'elles o maior proveito.
O REI
Comprehendo, querido Laerte, que queiras saber a verdade toda a respeito da morte de
teu estremecido pae. Mas estás tu resolvido a confundir amigos e inimigos, aquelles que
perderam e aquelles que ganharam com a sua morte?
LAERTE
Unicamente os inimigos quero punir.
O REI
E queres conhecel-os?
LAERTE
Quanto aos seus amigos, abro-lhes os braços com alvoroço; e similhante ao pelicano
que rasga o seio, para com o sangue alimentar os filhos, estou prompto a por elles dar o
meu sangue todo.
O REI
Ainda bem; fallas agora como bom filho e homem honrado. Sou innocente na morte de
teu pae, e deploro-a amargamente; demonstral-o-hei á tua rasão com provas tão claras
como a luz do dia.
O POVO (de fóra)
Deixem-a entrar.
LAERTE
O que é? Que rumor é esse? (Entra Ophelia estranhamente enfeitada com flores na
cabeça e palhas entrançadas nos cabellos.) (Continuando.) Meu pobre cerebro! Sequemse
as minhas lagrimas, que, sete vezes corrosivas, queimam meus olhos e afastam d'elles
o sentido da vista! Por Deus! A tua demencia será paga com usura, até que o nosso peso
faça baixar uma das conchas da balança. [112] Rosa de primavera, filha querida,
carinhosa irmã, boa Ophelia! Oh! ceus! pois será possivel que a rasão de uma jovem
mulher seja tão fragil como a vida do ancião! A natureza tem no seu amor um perfume
subtil e raro, cujas emanações se infiltram no objecto amado.
OPHELIA
Levaram-no em mesquinha padiola
E foram-no enterrar!
Mas chove-lhe na tumba, ai! grata esmola
De lagrimas um mar.
LAERTE
Possuisses tu toda a tua rasão, animasses-me tu á vingança, não conseguias crear em
mim uma emoção.
OPHELIA
Forçoso é que eu cante e tu tambem:
Abaixo! Abaixo!
Lançae-o abaixo!
Devias ouvir cantar ás fiadeiras; é a canção do intendente desleal, que raptou a filha de
seu amo.
LAERTE
Estes nadas tudo me dizem.
OPHELIA (a Laerte, dando-lhe uma flor)
Toma, é rosmaninho a flor da lembrança. Lembra-te de mim, peço-t'o, meu querido;
estes são amores perfeitos, é para que sempre viva no teu coração de irmão.
LAERTE
Ha sentido no seu delirio. Acaba de distinguir acertadamente a lembrança e o
pensamento.
OPHELIA (ao rei)
Aqui tendes, senhor, estas symbolicas flores. (Á rainha) Para vós, senhora, é arruda e
tambem para mim; para vós será a herva da ventura, para mim a da dor. Eis um
malmequer. Queria dar-vos violetas, mas feneceram todas quando meu pae morreu;
dizem que teve o fim do justo.
Porque era o bom Robim minha alegria
[113]
LAERTE
A melancolia, a afflicção, a colera, o proprio inferno, tudo é divino proferido por ella.
OPHELIA
E nunca mais virá?!
Morreu! morreu! morreu! ai! que agonia!
Não mais! não voltará!
Era a barba tão branca como a neve:
Partiu! foi para os céus.
Perdida, inutil dor! Breve, até breve,
Tem dó d'elle, meu Deus!...
Assim como de todas as almas christãs, assim o peço a Deus, e elle seja comvosco.
(Sáe.)
LAERTE
Vêem? Meu Deus!...
O REI
Deixa-me, Laerte, fallar-te no teu infortunio; é um direito que me pertence e que me não
pódes negar sem injustiça. Reune em particular os teus amigos mais assisados; elles nos
ouçam, e depois julguem entre nós dois. Se culpado me acharem, directa ou
indirectamente, entrego-te, em expiação da minha culpa, reino, corôa e vida, e tudo
quanto possa dizer meu; no caso contrario, peço-te só paciencia, e de accordo
obraremos para te alcançar uma completa satisfação.
LAERTE
Consinto. As circumstancias da sua morte, o seu funeral obscuro, em que nem trophéus,
nem espada, nem brazão figuraram, a ausencia de toda a ceremonia funebre no saímento
do seu corpo, são como um aviso do céu, que me clama pela voz celeste: Indaga como
foi.
O REI
Faça-se pois um inquerito, e o cutelo do algoz puna o culpado. Agora peço-te, Laerte,
que me sigas. (Sáem ambos.)
[114]
SCENA VI
Um quarto no castello de Elsenor
Entram HORACIO e um CREADO
HORACIO
Quem é que me pretende fallar?
O CREADO
Marinheiros... e dizem que têem cartas que lhe são dirigidas.
HORACIO
Que entrem pois; (o creado sáe) (só) não percebo de que canto do mundo se lembraram
de me escrever. Só se for Hamlet.
Entram os MARINHEIROS
PRIMEIRO MARINHEIRO
Guarde-o Deus, senhor!
HORACIO
Igualmente a ti!
PRIMEIRO MARINHEIRO
Fal-o-ha, se for da sua vontade. (Entrega uma carta) Aqui tem esta carta, é do
embaixador que foi mandado a Inglaterra; o senhor, segundo me asseguraram, chama-se
Horacio, não é verdade? (Dá-lhe outra carta.)
HORACIO (abrindo a carta, lendo)
«Horacio, quando receberes esta carta, proporciona a estes homens o fallarem ao rei;
têem cartas para lhe entregar. Mal tinhamos dois dias de viagem, um corsario armado
até aos dentes deu-nos caça; vendo nós que elle era mais veleiro, fizemos das fraquezas
forças, e encetámos combate. Na abordagem, saltei-lhe na tolda, mas n'aquelle
momento afastaram-se os dois navios, e eu achei-me só e prisioneiro. Comportaram-se
commigo como corsarios humanos, mas sabiam o que faziam, porque contam pedir
avultado resgate. Faze chegar ás mãos do rei a carta que lhe envio, depois vem ter
commigo, com a celeridade que porias em evitar a morte. Tenho que confiar aos [115]
teus ouvidos palavras que te emudecerão de espanto, e comtudo ainda são fracas para
a gravidade do assumpto que devem exprimir. Estes marinheiros te conduzirão ao sitio
onde me acho. Rosencrantz e Guildenstern navegam para a Inglaterra. Tenho muito
que te contar a esse respeito. Adeus. Aquelle que sabes ser teu do coração==Hamlet.»
Venham, vou facilitar-lhes a entrega das cartas, depois conduzam-me o mais prompto
que podérem junto d'aquelle que lh'as entregou. (Sáem todos.)
SCENA VII
Outro quarto no castello
Entram o REI e LAERTE
O REI
Devo estar illibado aos teus olhos, e deves ver em mim um amigo sincero, agora que já
deves ter percebido que o assassino de teu pae tambem queria a minha morte.
LAERTE
Parece-me evidente! Mas diga-me porque, depois de actos tão graves e criminosos por
sua natureza, não perseguiu o auctor, como era obrigado a fazel-o, por sua dignidade,
pela sua salvação, pela sua prudencia, por tudo emfim?
O REI
Ah! por duas rasões, que provavelmente acharás sem valia, mas que a meus olhos têem
toda a gravidade. A rainha sua mãe idolatra-o, é a existencia d'ella esse filho; eu por
minha parte não sei se deva considerar isto como virtude ou como desgraça; mas ella
está tão intimamente ligada á minha alma, qual satellite ao seu planeta, que só por ella e
para ella vivo. O outro motivo que me impede de formular contra elle uma accusação
publica, é a immensa affeição que o povo lhe consagra; affeição que desculpa todas as
suas faltas, e similhante a essas fontes que transformam em pedra a madeira, converteria
as suas cadeias em aureola de gloria. N'estas circumstancias, pois, as minhas frechas
demasiado tenues para romperem tão forte vento, em vez de tocarem no alvo, voltandose,
feririam só o que as despediu.
[116]
LAERTE
Assim perdi meu nobre pae, e vejo minha estremecida irmã na mais desordenada
demencia! Mas se é permittido elogiar o que já passou, ella excedia em perfeições as
creaturas da sua idade, e não me hei de eu vingar?
O REI
Essa mágua não te perturbe o somno; não me julgues de um caracter tão pusillanime e
estulto, que um perigo, que tanto me impressionou, seja por mim tratado de bagatella.
Brevemente saberás ainda mais. Eu estremecia o teu pae; nós somos devéras amigos,
agora deves acreditar que...
Entra um MENSAGEIRO
O REI
Que queres? que ha de novo?
O MENSAGEIRO
Senhor, cartas de Hamlet; esta para vossa magestade, est'outra para a rainha.
O REI
De Hamlet!! quem as trouxe?
O MENSAGEIRO
Disseram-me que uns marinheiros, eu não os vi. Estas cartas foram-me entregues por
Claudio, que as recebeu do portador.
O REI (pegando na carta)
Ouvirás, Laerte, o seu conteúdo. (Ao mensageiro) Retira-te (o mensageiro sáe) (abre a
carta e lê): «Alto e poderoso monarcha, depozeram-me em territorio vosso, nú; ámanhã
solicitarei o comparecer na vossa presença, e então se me for permittido referir-vos-hei
o que deu causa ao meu estranho e inesperado regresso.==Hamlet». Que significa
isto? voltariam todos, será engano, será tudo falso?
LAERTE
Conhece a sua letra?
O REI
É a letra de Hamlet. Nú, e n'um post-scriptum acrescenta só. Poderás tu dizer-me o que
tudo isto significa?
[117]
LAERTE
Nada sei responder; mas que venha. Sinto renascer a chamma no meu coração abatido,
pensando que lhe poderei dizer cara a cara: Foste tu o assassino de meu pae.
O REI
Se assim é, Laerte, não póde nem poderia ser de outra maneira; queres tu seguir um meu
conselho?
LAERTE
Sim, comtanto que não me aconselhe a paz.
O REI
Pois que faças pazes com o teu coração é que eu quero: se é verdade que regressou, o
que indica que Hamlet recúa diante da viagem e renuncia a ella, suggerir-lhe-hei uma
aventura, cujo plano está maduro no meu espirito, e em que não poderá deixar de
succumbir, e sem que a sua morte possa ser attribuida a pessoa alguma
intencionalmente; tanto que sua propria mãe limitar-se-ha a lastimar o occorrido, vendo
só uma fatalidade.
LAERTE
Seguirei gostosamente os seus conselhos, e ainda de melhor vontade, se podér combinar
de modo que eu seja o agente principal.
O REI
Vejo que os nossos desejos se combinam completamente. Frequentemente, desde as
tuas viagens, têem-me gabado por excederes a todos no exercicio de uma arte. Todas as
tuas qualidades reunidas excitaram em Hamlet menos ciumes do que esta só; é comtudo
talvez a menos importante.
LAERTE
E qual é essa qualidade?
O REI
Um laço de fitas no chapéu da juventude, mas um enfeite necessario; porque não lhe
fica menos bem um ornamento um pouco frivolo mesmo, do que convem á idade
madura as vestes encorpadas e serias que lhe impõem a saude e a gravidade. Ha dois
mezes esteve aqui um cavalleiro normando; tenho visto francezes e combatido com
elles, e são devéras habeis, [118] mas a habilidade d'esse homem parecia ter o poder da
magia. Parecia arroscado á sella, e guiava o cavallo tão prodigiosamente, que pareciam
um só e o mesmo animal intelligente. Excedeu tudo quanto se póde imaginar na arte de
cavallaria e volteio, tão perfeita era a execução.
LAERTE
Um cavalleiro normando, disse?
O REI
Um normando.
LAERTE
Então era Lamond; não póde ser outro.
O REI
Elle mesmo.
LAERTE
Bem o conheço, é a phenix, a perola da sua patria.
O REI
Fallou de ti vantajosamente, fez os maiores elogios da tua pericia no manejo das armas,
sobretudo da espada, declarando ser impossivel achar outro igual, e jurando que os
jogadores de espada francezes perderam agilidade, posição e golpe de vista depois que
comtigo se mediram. Estes elogios que elle te dispensava, de tal modo exasperaram o
ciume de Hamlet, que anhelava só pelo teu regresso para comtigo combater, e
transformaram o ciume em furia. Tirando pois partido d'estas circumstancias...
LAERTE
Que partido poderemos nós tirar?
O REI
Laerte, amavas tu realmente teu pae, ou não era a tua dor senão um simulacro, toda
exterior e nada interior?
LAERTE
Porque esta pergunta?
O REI
Longe de mim o pensar que não amavas teu pae; mas a affeição é um sentimento que se
gera em nós, e a experiencia [119] de todos os dias nos faz ver que o tempo destempera
a sua vivacidade e o seu ardor. Mesmo na chamma do amor ha ás vezes uma mancha
que a amortece, e cousa alguma se conserva permanentemente bella, porque o bom, pelo
crescimento degenera em plethora, e parece abafado pela demasiada nutrição. O que
pretendemos fazer, devemos fazel-o na occasião propria, porque a vontade tambem
muda; tantas são as suas mudanças, quantas as linguas, mãos e outros accessorios que se
cruzam no seu caminho, e então a execução não é mais que um dever, cujo
cumprimento, similhante aos demasiado frequentes suspiros, nos magôa, alliviando-nos.
Mas entremos francamente na questão. Hamlet regressa. Que estás tu disposto a fazer,
para te mostrares digno filho de teu pae, não com palavras, mas com obras?
LAERTE
Assassinal-o-ía mesmo no templo do Senhor.
O REI
Effectivamente o assassino não recúa perante o santuario, quando pretende saciar a
vingança. Mas, querido Laerte, queres seguir o meu conselho? Encerra-te nos teus
aposentos. Hamlet, regressando, saberá da tua estada n'estes logares; farei com que
exaltem na sua presença os teus talentos, e que encareçam os elogios mais que os
francezes o fizeram; por este meio seguir-se-hão um desafio e apostas sobre a pericia
dos contendores. Elle que está desprevenido e é generoso e de nada desconfia, não
examinará os floretes; de modo que, com alguma habilidade da tua parte, poderás
escolher um florete sem botão, e por meio de uma bem dirigida estocada fazer-lhe pagar
a morte de teu pae.
LAERTE
Como o rei disse, Laerte o fará; mesmo envenenarei a ponta do meu florete. Comprei a
um empirico uma droga mortal. Por pouco que a ponta de um punhal esteja n'ella
banhada, por leve que seja o ferimento, não ha balsamo precioso, embora composto dos
mais energicos contravenenos, que possa salvar da morte inevitavel e rapida o ferido.
Assim, prepararei a ponta do meu florete, para que mesmo leve arranhadura lhe seja
fatal.
O REI
Tornaremos ao assumpto, e combinaremos o momento e maneira [120] mais facil e
favoravel para a sua execução. Se tivesse que falhar este nosso plano, mais valeria nada
tentar. Mas é necessario que esta primeira combinação se firme n'uma segunda, que a
substitua, no caso da arma se quebrar no primeiro encontro. Um momento... Vejamos.
Faremos apostas importantes sobre a respectiva pericia de ambos. Quando, no calor do
combate, estiverem afogueados e sedentos, para conseguir o intento não poupes o teu
adversario, ataca-o com vigor. Hamlet, sem duvida, pedirá uma bebida; ser-lhe-ha então
apresentada uma, de antemão preparada, e uma só gota bastará, se a tua espada te trahir,
para conseguirmos o fim desejado. Mas silencio! Que rumor é este? (Entra a rainha.)
Que ha de novo, querida Gertrudes?
A RAINHA
Accumulam-se as desgraças, e repetem-se com assustadora rapidez. Laerte, tua irmã
suicidou-se, afogando-se.
LAERTE
Onde?
A RAINHA
Na margem da vizinha ribeira cresce um salgueiro, cuja prateada folhagem se reflecte
nas aguas crystallinas. Tua irmã approximou-se d'aquelle sitio, sempre tecendo
grinaldas de rainunculos, ortigas, malmequeres, e d'essas flores a que os nossos pastores
dão um nome bem grosseiro, mas que as nossas castas donzellas denominam
poeticamente dedo da morte. Quando procurava ornar com as suas innocentes grinaldas
as argenteas frondes do salgueiro, oh! desgraça! descuidosa foi envolvida na corrente,
cercada dos ornatos que lhe serviam como de corôa virginal. Algum tempo suspensa
pelas vestes sobre a corrente, assimilhava-se á sereia, cantando incoherentes trechos,
inconsciente do proprio risco, como se estivesse no seu nativo elemento. Mas tudo tem
um fim, e em breve, sossobrando pelo peso das encharcadas vestes, cessou de cantar, e
tornou-se cadaver levado pela corrente.
LAERTE
Oh! desgraçada! afogada!!
A RAINHA
Sim, Laerte!
[121]
LAERTE
Sequem-se as minhas lagrimas; já tiveste agua em demasia, infeliz Ophelia! Mas
porque? Mais força tem a natureza do que a vontade; todos lhe devemos obediencia.
Para que uma falsa vergonha? Rolem, pois pelas faces lagrimas santas, e arrebatem na
sua corrente a minha ultima fraqueza. Adeus, senhor! As minhas palavras de fogo
tornar-se-íam embravecido vulcão, se as lagrimas do coração o não apagassem. (Sáe.)
O REI
Sigâmol-o, Gertrudes. Quanto me custou a serenar a sua colera! Receio bem que estas
novas desgraças lhe despertem em toda a sua plenitude a sanha da vingança. Sigâmol-o,
pois.
Fim do acto quarto
[123]
ACTO QUINTO
SCENA I
Um cemiterio
Entram DOIS COVEIROS com enxadas
PRIMEIRO COVEIRO
Dever-se-ha enterrar em chão sagrado aquelle que voluntariamente procurou a sua
salvação no suicidio?
SEGUNDO COVEIRO
Eu cá digo que sim; avia-te em cavar a cova, o magistrado viu e decidiu que aqui fosse
sepultada.
PRIMEIRO COVEIRO
Isso não póde ser, a menos que não se afogasse involuntariamente.
SEGUNDO COVEIRO
Já está reconhecido e decidido.
PRIMEIRO COVEIRO
As probabilidades todas são que pereceu se offendendo. Ninguem é capaz persuadir do
contrario. Vê tu como eu o provo. Se me afogar voluntariamente existe um acto; ora, um
acto subvide-se em tres ramos: a acção, o cumprimento e a execução; ergo, afogou-se
voluntariamente.
SEGUNDO COVEIRO
Assim será, mas escuta-me ao menos.
[124]
PRIMEIRO COVEIRO
Ouve-me ainda; a agua está aqui, o homem está acolá; muito bem, o homem vae
encontrar a agua e se afoga; forçosamente morre por seu motu proprio; nota isto bem.
Mas se, pelo contrario, é a agua que vem encontrar o homem, e elle se afoga, então já
não é elle que procura a morte; ergo, aquelle que não é culpado na sua morte, não poz
termo voluntariamente á vida.
SEGUNDO COVEIRO
Mas será lei?
PRIMEIRO COVEIRO
É a lei que preside ao inquerito do magistrado.
SEGUNDO COVEIRO
Queres que te diga o que penso? Se a defunta não fosse senhora de qualidade, de certo
não a enterravam em chão sagrado.
PRIMEIRO COVEIRO
É bem verdade o que dizes; é triste que as pessoas de qualidade tenham, a mais dos
outros christãos seus iguaes, o direito de se afogarem e de se enforcarem. Vamos
sempre cavando! Não ha nobreza mais antiga que a dos jardineiros, lavradores e
coveiros; seguem a profissão de Adão!
SEGUNDO COVEIRO
Pois Adão era nobre?
PRIMEIRO COVEIRO
O primeiro que usou armas!
SEGUNDO COVEIRO
Deixa-te d'isso, não consta que as tivesse!
PRIMEIRO COVEIRO
Sempre és um pagão! como comprehendes tu então a escriptura sagrada? A escriptura
diz que Adão trabalhava o solo; como poderia elle trabalhar sem pá ou enxada? Essas
eram as suas armas. Vou fazer-te outra pergunta, se não me responderes com acerto, não
és mais que um....
SEGUNDO COVEIRO
Asno! continúa.
[125]
PRIMEIRO COVEIRO
Quem é que construiu mais solidamente que o pedreiro, carpinteiro e constructor de
navios?
SEGUNDO COVEIRO
O constructor do cadafalso, porque sobrevive a innumeros hospedes.
PRIMEIRO COVEIRO
Boa resposta, palavra de honra. Cadafalso é bem achado; mas para quem se fez o
cadafalso? para os que fazem o mal; ora, tu fizeste mal em dizer que o cadafalso é mais
solido que a igreja, logo merecias o cadafalso. Vamos, procura e responde.
SEGUNDO COVEIRO
Agora eu! Quem é que construiu mais solidamente do que o pedreiro, carpinteiro e
constructor de navios?
PRIMEIRO COVEIRO
Dize tu primeiro, eu cá já sei.
SEGUNDO COVEIRO
Tambem eu.
PRIMEIRO COVEIRO
Vejamos.
SEGUNDO COVEIRO
Nada, não atino.
HAMLET e HORACIO apparecem ao fundo
PRIMEIRO COVEIRO
Basta de tratos ao teu cerebro; escusas de pensar mais, ficas sempre na mesma. Quando
alguma vez te fizerem essa pergunta, responde: «É o coveiro; as moradas que construe
duram até ao dia de juizo». Agora vae a casa de Vaughan e traze-me um copo de
licor.(O segundo coveiro sáe, cantando.)
Quando eu era mancebo e quando amava
Tudo era para mim rapido goso,
Sómente noite e dia andava ancioso
Por o tempo matar que me matava.
HAMLET
Pois este homem não terá consciencia do que está fazendo, cantando assim, quando
cava uma sepultura?
[126]
HORACIO
O habito tudo póde.
HAMLET
E verdade, a mão pouco afeita ao trabalho tem o tacto mais delicado!
PRIMEIRO COVEIRO (cantando)
Mas a idade chegou, passo furtivo
Nas gastadoras garras me ha tomado,
E assim, mau grado meu, me ha condemnado
A viver entre a morte, morto-vivo. (Desenterra uma caveira.)
HAMLET (apontando para uma caveira)
Houve tempo em que esta cabeça tinha uma lingua e cantava; agora este rustico fal-a
rolar pelo solo, como se fosse a mandibula de Caim, o primeiro homicida. O craneo que
este imbecil trata com tão pouco respeito, era talvez de algum profundo politico, que se
julgava até capaz de impor a sua opinião ao proprio Deus, não é verdade?
HORACIO
Tudo póde ser, senhor.
HAMLET
Ou talvez de algum cortezão cujo prestimo unico fosse repetir: «Deus seja comvosco,
como está, meu senhor?» É talvez o craneo do sr. fulano, que gabava o cavallo do sr.
cicrano, com a idéa que este lh'o désse, não é verdade, Horacio?
HORACIO
Sim, meu senhor!
HAMLET
Deve assim ser! Agora pertence aos vermes; não tem nem pelle, nem sangue, nem
carne, e este coveiro fende-o com a sua enxada. Eis uma estranha revolução, assim a
comprehendessemos bem. Joga-se a bola com esses ossos, como se nada tivessem
custado a formar. Sinto estalar os meus só pensando-o.
PRIMEIRO COVEIRO (cantando)
Uma enxada e uma pá logo em seguida,
Um lençol que amortalha o corpo todo,
Um buraco depois feito no lodo,
Eis ao que se reduz a humana vida. (Desenterra outra caveira.)
HAMLET
Eis um outro craneo; quem sabe se não seria de um jurisconsulto. [127] Agora acabaram
as trapaças, as distincções subtis, as causas, as auctoridades legaes e as finuras. Em
vida, de certo não consentia sem um processo que este imbecil lhe percutisse o craneo
com a enxada. Porque não lhe intenta agora uma acção por vias de facto e sevicias?
Quem sabe, talvez fosse um nedio comprador de bens immoveis, com os seus direitos,
rendas, privilegios, hypothecas e contratos. Eil-o agora elle mesmo hypothecado, tem o
privilegio commum a todos os mortaes, de ver a sua cabeça coberta de pó e terra. Pois
que! todas as acquisições tão bem garantidas, não terão outro complemento senão
assegurar-lhe um espaço apenas igual á superficie de dois contratos de venda? Todos os
seus titulos mal caberiam n'este cofre, e comtudo é hoje a sua unica propriedade. Ah!
HORACIO
Unica, senhor!
HAMLET
Horacio, o pergaminho faz-se de pelles de carneiro, não é verdade?
HORACIO
Tambem de bezerro.
HAMLET
São pois os carneiros e bezerros que fazem fé em taes titulos. Vou interrogar este
rustico. A quem pertence essa cova?
PRIMEIRO COVEIRO
A mim!
(Cantando)
Um buraco depois feito no lodo,
Eis ao que se reduz a humana vida.
HAMLET
Effectivamente, creio ser tua, pois que estás dentro d'ella.
PRIMEIRO COVEIRO
O senhor está fóra, logo não é sua; mas apesar d'ella não me ser destinada, é comtudo
minha.
HAMLET
Mentes, é para um morto, e não para um vivo.
PRIMEIRO COVEIRO
Eis um desmentido prompto e que não admitte replica.
[128]
HAMLET
Para que homem cavas essa cova?
PRIMEIRO COVEIRO
Senhor, não é para um homem!
HAMLET
Para que mulher então?
PRIMEIRO COVEIRO
Nem tão pouco para uma mulher!
HAMLET
Quem será pois depositado n'esta cova?
PRIMEIRO COVEIRO
Uma pessoa que foi mulher, hoje é defunta; Deus se compadeça da sua alma.
HAMLET
Que agudeza no seu positivismo! é preciso fallar-lhe com toda a clareza, para não ser
por elle enredado. Por Deus, Horacio, que noto ha tres annos que o mundo se torna
retrogrado, e o rustico se approxima tanto do cortezão, que quasi se confundem. Ha
quanto tempo és coveiro?
O COVEIRO
Dei-me a este officio desde o dia em que o defunto rei Hamlet venceu a Fortimbraz.
HAMLET
Quanto tempo haverá?
O COVEIRO
Não o sabe? Pois não ha imbecil que lh'o não diga. Foi no mesmo dia em que nasceu o
joven Hamlet, aquelle que enlouqueceu, e foi mandado para Inglaterra.
HAMLET
É isso; e porque o mandaram para Inglaterra?
O COVEIRO
Ora, porque? porque estava louco; talvez lá recupere a rasão, e se não a recuperar,
tambem não se perde muito.
[129]
HAMLET
E porque?
O COVEIRO
Não será visto aqui, e lá todos são tão loucos como elle.
HAMLET
Como enlouqueceu elle?
O COVEIRO
De um modo bem estranho, segundo dizem.
HAMLET
Mas de que modo?
O COVEIRO
É claro, perdendo a rasão.
HAMLET
E qual foi o motivo?
O COVEIRO
Um motivo dinamarquez, um motivo d'este paiz em que sou coveiro desde a infancia,
ha trinta annos.
HAMLET
Dize-me, quanto tempo póde um homem estar enterrado, antes de apodrecer?
O COVEIRO
Se não está já podre antes de morrer (porque temos n'esta epocha muito corpo
gangrenado, que mal supporta a inhumação), póde conservar-se de oito a nove annos;
um surrador conserva-se nove annos.
HAMLET
Porque mais tempo que os outros?
O COVEIRO
O exercicio da sua profissão cortiu-lhe de tal modo a pelle, que fica impermeavel por
muito tempo, e de certo sabe que a agua é o mais activo destruidor dos cadaveres. Vê
esta caveira? Ficou vinte e tres annos debaixo da terra.
HAMLET
De quem era?
[130]
O COVEIRO
De um typo original; ora, quem lhe parece que seria?
HAMLET
Como posso eu sabel-o?
O COVEIRO
Leve-o o diabo. Lembro-me ainda do dia em que me vasou sobre a cabeça um frasco de
vinho do Rheno. Esta caveira, senhor, era de Yorick, o bobo do rei.
HAMLET
Este craneo?
O COVEIRO
Sim, este mesmo.
HAMLET (pegando na caveira)
Dá-m'o, deixa-me vel-o. Pobre Yorick! Conheci-o, Horacio, era uma mina inexgotavel
de ditos engraçados; tinha uma imaginação viva e fecunda! quantas vezes me levou aos
hombros! agora ao pensal-o annuvia-se-me o coração. Aqui estavam os seus labios, em
que tantos osculos depuz. Onde estão agora os teus sarcasmos, as tuas replicas, as tuas
canções, esses rasgos de alegria, que promoviam a hilaridade de todos os convivas?
Que! pois ninguem já póde rir com as tuas facecias? Descarnadas estão as faces. Vae,
entra como agora estás, na alcova de alguma beldade da moda; dize-lhe então que
arrebique e enfeites nada lhe valem, porque um dia será igual a ti. Fal-a rir, dizendolh'o.
Dize-me tu, Horacio...
HORACIO
O que, meu senhor?
HAMLET
Julgas tu que Alexandre, depois de enterrado, se parecesse com Yorick?
HORACIO
De certo!
HAMLET
E que tivesse tão mau cheiro? Fóra! (Deita fóra o craneo.)
HORACIO
Sem duvida alguma, senhor.
[131]
HAMLET
A que destinos grosseiros é possivel baixarmos, Horacio? Quem sabe se, proseguindo
nas suas successivas transformações, as cinzas de Alexandre não estão hoje empregadas
em tapar um barril?
HORACIO
Seria entrar n'um exame demasiado minucioso.
HAMLET
Não concordo. Podemos seguir seriamente esse exame, e com probabilidades de obter
um resultado. Por exemplo, Alexandre está morto, Alexandre está sepultado, Alexandre
tornou-se pó; o pó é terra, da terra tira-se argilla, e quem impede que esta argilla, ultima
metamorphose de Alexandre, seja empregada como batoque n'um barril de cerveja? O
imperial Cesar, morto, tornou-se pó, e serve talvez para vedar uma fenda e interceptar a
passagem do ar; e essa argilla, que espalhava o terror sobre o universo, vae calafetar um
muro para impedir que o vento passe. Mas, silencio: afastemo-nos, chega o rei: (Entram
processionalmente padres, levando á mão o caixão de Ophelia; segue-se Laerte e o
cortejo funebre, mais atrás o rei, a rainha e a côrte) e tambem a rainha! toda a côrte! A
quem prestarão os ultimos deveres? De quem será este funeral incompleto? Tudo
denuncia um suicidio. Deve porém ser pessoa de categoria! Occultemo-nos e
observemos, Horacio. (Afastam-se um pouco Hamlet e Horacio.)
LAERTE
Que ceremonias falta cumprir?
HAMLET
Olha, é Laerte, um nobre mancebo.
LAERTE
Ha mais alguma cousa que fazer?
PRIMEIRO PADRE
Fizemos já para o seu funeral tudo quanto nos era licito fazer; a sua morte tinha um
caracter suspeito, e se ordens superiores não tivessem imposto silencio aos canones da
Igreja, teria sido sepultada em chão profano, onde teria ficado até que a acordasse o
clarim do juizo final. Em vez de orar por ella, [132] teriamos lançado sobre o seu corpo
tições, entulho e pedras; e comtudo coroaram-n'a como virgem, e flores cobriram a sua
campa, e o tanger do bronze sagrado acompanhou-a á sua ultima morada.
LAERTE
Então nada mais se póde fazer?
PRIMEIRO PADRE
Mais nada; profanariamos o rito sagrado se entoassemos um requiem, ou se
implorassemos para ella o repouso destinado ás almas que voaram ao céu santamente.
LAERTE
Seja pois o seu corpo depositado na campa, e possam d'elle e da sua carne, pura e sem
manha, desabrochar violetas! Sou eu que t'o digo, padre sem alma, minha irmã gosará
no céu a bemaventurança eterna, emquanto que tu extorcer-te-has no inferno nas
convulsões do supplicio dos condemnados.
HAMLET
Que? É pois a bella Ophelia?
A RAINHA (lançando flores sobre a campa)
Flores para esta joven flor. Adeus! Esperava ver-te esposa do meu Hamlet; contava,
encantadora donzella, enfeitar o teu leito nupcial; nunca pensei espargir flores sobre a
tua sepultura.
LAERTE
Oh! que uma triplice e dez vezes triplice maldição cáia sobre a cabeça do scelerado que
commetteu tão negra acção, e provocou a perda da sua rasão. Esperem que, antes que a
terra a cubra, a estreite mais uma vez nos meus braços (salta para dentro da cova).
Agora enterrem conjunctamente vivos e mortos, elevem sobre nós uma montanha que
exceda em altura o antigo Pélion, ou o azulado Olympo, cujo cimo vem beijar as
nuvens.
HAMLET (adiantando-se)
Quem é que na sua dor se exprime com tanta emphase; cuja voz detem os astros no seu
giro, attonitos de o ouvirem? Sou Hamlet, o dinamarquez! (Arremessa-se á cova.) [133]
LAERTE (lançando-se a elle)
O inferno se apodere da tua alma!
HAMLET
É um abominavel desejo: larga-me a garganta, retira as mãos, abaixo, aconselho-t'o eu;
não sou nem mau, nem arrebatado, mas é perigoso excitar-me, e obrarás assisadamente
pensando assim. Abaixo as mãos!
O REI
Separem-os.
A RAINHA
Hamlet! Hamlet!
TODOS
Senhores!
HORACIO
Contenham-se.
HAMLET
Por um tal motivo sinto-me capaz de combater com elle até ao ultimo alento.
A RAINHA
Meu filho, qual é o motivo?
HAMLET
Amava Ophelia, e as affeições juntas de quarenta mil irmãos não poderiam igualar a
minha; (a Laerte) e que serias tu capaz de fazer por ella?
O REI
Deixa-o, Laerte, está louco.
A RAINHA
Pelo amor de Deus, não faça caso das suas palavras.
HAMLET
Vamos, dize-me, que tencionas tu fazer? Prantear, combater, jejuar, rasgar tuas proprias
carnes, beber o Issel todo, devorar um crocodilo? Tudo farei. Vieste aqui para te
lamentar, para me desafiar, precipitando-te dentro da sua cova; enterra-te vivo com ella,
outro tanto farei; e já que fallaste em montanhas, accumulem ellas sobre nós tanta terra,
que o cume da nossa pyramide tumular toque a zona ardente, e ao pé d'ella [134] o
monte Ossa não pareça mais que uma verruga. Pódes encolerisar-te, que não me
assustam os teus furores.
A RAINHA
É um accesso de loucura que durará algum tempo; depois, similhante á meiga pomba
acalentando os filhinhos, ficará silencioso e immovel.
HAMLET (a Laerte)
Dize-me, porque me tratas assim? Sempre fui teu amigo. Mas não importa. Aindaque
Hercules se oppozesse, se o gato miasse, o cão havia de ladrar (afasta-se).
O REI
Siga-o, peço-lhe, meu caro Horacio. (Horacio segue Hamlet) (a Laerte) Tem paciencia,
lembra-te da nossa conversação de hontem, (Á rainha) Querida Gertrudes, faça com que
velem sobre Hamlet; (á parte) é preciso dar como monumento a este tumulo uma
victima humana. Cedo estarei descansado; até então, paciencia! (Sáem todos.)
SCENA II
Uma sala no castello
Entram HAMLET e HORACIO
HAMLET
Basta sobre esse assumpto; passemos ao outro, recordas-te bem de todas as
circumstancias?
HORACIO
Se me lembro, meu senhor!
HAMLET
Uma especie de lucta apoderára-se do meu coração, vedava-me o somno, sentia-me
peior que um facinora acorrentado! Adoptando comtudo uma resolução temeraria, achei
na temeridade a minha força; lembremo-nos sempre, Horacio, que a imprudencia é
muitas vezes o nosso prestante auxiliar, quando os nossos mais profundos calculos são
impotentes, e isto [135] deve-nos ensinar que ha uma Providencia que aperfeiçoa e
completa os projectos que imperfeitamente esboçâmos.
HORACIO
Não ha cousa mais certa!
HAMLET
Saí pois do meu camarote a bordo, e coberto com as roupas de viagem procurei e
encontrei pelo tacto, ás escuras, a sua mala; abri-a e revolvi-a toda, em seguida recolhime
ao meu aposento; então o perigo baniu todo o escrupulo, abri o despacho rompendo
o sêllo real! Escuta o que li, Horacio. Oh! perfidia real! Apoiando-se em differentes
motivos, a salvação da Dinamarca e da Inglaterra, e o perigo que para elle havia em eu
continuar a viver, o rei ordenava expressamente, que depois da leitura d'essa carta, sem
demora alguma, nem mesmo a necessaria para afiar o cutello, eu fosse decapitado.
HORACIO
Será possivel?
HAMLET
Aqui tens a carta, lê-a á tua vontade. Mas queres tu saber o que eu então fiz?
HORACIO
Diga, senhor; que foi?
HAMLET
Para saír salvo dos laços d'esta infame traição, appellei para a minha intelligencia, e
depressa formei o meu plano. Sentei-me, e redigi um despacho com a melhor letra que
pude fazer. Antigamente, assim como os nossos homens d'estado considerava uma
vergonha ter boa letra; e se soubesses quanto eu desejei perdel-a! mas n'esta occasião
foi-me maravilhosamente util. Queres saber o que escrevi?
HORACIO
Com todo o gosto, senhor.
HAMLET
Dirigindo-se ao monarcha inglez como seu fiel tributario, dizia-lhe o rei de Dinamarca,
se queria que se conservasse virente a palma da amisade, a paz se coroasse de espigas e
se estreitassem os laços de uma união duradoura, lhe [136] ordenava que, finda a leitura
da sua carta, sem outro exame, sem lhes dar tempo de se confessarem, fizesse suppliciar
os portadores do despacho.
HORACIO
Mas com que sêllo fechou esse escripto?
HAMLET
A Providencia não me desamparou ainda n'essa occasião; tinha na minha bolsa o sêllo
de meu pae, reproducção exacta do sêllo do estado. Dobrei pois o meu despacho na
fórma do estylo, subscriptei-o e sellei-o, depois colloquei-o no logar em que estava o
outro: o engano não foi descoberto. No dia seguinte, em vez de combate sabes o que
houve.
HORACIO
Assim, Rosencrantz e Guildenstern, vão receber o seu justo castigo?
HAMLET
Procuraram-n'o por suas proprias mãos; não me peza na consciencia. Só de si se podem
queixar. É sempre uma desgraça para vis subalternos acharem-se envolvidos nas
contendas de dois poderosos adversarios.
HORACIO
E é rei? meu Deus!
HAMLET
O meu dever está agora claramente indicado. Áquelle que assassinou meu pae,
deshonrou minha mãe, que se interpoz entre a escolha da nação e as minhas esperanças,
que attentou contra a minha vida traiçoeira e perfidamente, é justiça que o meu braço o
puna. E não seria um crime digno da condemnação eterna, deixar continuar esta ulcera
no seu trabalho corrosivo?
HORACIO
Mas dentro em pouco saberá de Inglaterra o desenlace de todo este negocio?
HAMLET
Em breve o saberá, é verdade, mas o tempo que até então decorrer, pertence-me, e o fio
da vida do homem corta-se em menos tempo do que o preciso para contar até dois. O
que me [137] peza, meu caro Horacio, é ter desattendido Laerte, porque eu tambem
sinto o que elle deve sentir. Sempre prezei a sua estima; mas a emphatica exaltação da
sua dor exacerbou-me.
HORACIO
Silencio, principe; approxima-se alguem.
Entra OSRICO
OSRICO
Alegro-me, principe, que tenha regressado á Dinamarca.
HAMLET
Obrigado, senhor. (A Horacio) Conheces tu esse insecto?
HORACIO
Não, meu senhor.
HAMLET
És pois um homem moral, é um vicio conhecel-o. É verdade que possue muitas e ferteis
propriedades, mas é um estupido animal, que tem mando sobre os outros, seguro de
achar a sua mangedoura na mesa real; é um ente desprezivel, mas, como disse, é senhor
de vastos dominios.
OSRICO
Meu bom senhor, se não incommodo vossa alteza, alguma cousa tinha que lhe
communicar da parte de sua magestade.
HAMLET
Escutal-o-hei com prazer. Mas cubra-se já, que o chapéu foi feito para estar na cabeça.
OSRICO
Obrigado, senhor, mas faz muita calma.
HAMLET
Faz muito frio, não acha? O vento está norte.
OSRICO
Effectivamente, faz bastante frio.
[138]
HAMLET
Não sei se é effeito de uma predisposição particular, mas acho um calor abrasador.
OSRICO
Não ha duvida, faz tanto calor, que nem posso quasi respirar. Mas, meu senhor, sua
magestade encarregou-me de lhe dizer que fez uma aposta consideravel, de que vossa
alteza é o motivo.
HAMLET (fazendo-lhe signal de se cobrir)
Faz favor.
OSRICO
Perdão, senhor, mas não me incommoda. Vossa alteza de certo é sabedor que chegou a
esta côrte Laerte, um joven mui dextro, dotado das mais raras qualidades, agradavel no
trato, um perfeito moço. Para fallar d'elle como merece, póde-se dizer que é o espelho e
o almanach do bom tom, porque n'elle estão reunidas todas as qualidades que deve
possuir um perfeito cavalheiro.
HAMLET
Senhor, não encareceu o retrato que d'elle fez; não é sufficiente toda a arithmetica da
memoria para redigir o inventario especificado de todas as suas perfeições, e ainda
assim o juizo ficaria áquem da verdade. Fallando conscienciosamente, tenho-o na conta
de um cavalheiro distincto e de raro merecimento; digo-o sinceramente; para achar
outro igual, forçoso é que se olhe no seu espelho: os outros não seriam senão a sua
sombra.
OSRICO
O principe falla d'elle com a convicção da estima.
HAMLET
De que se trata, pois? Escusâmos embaçar as suas qualidades com o nosso juizo.
OSRICO
Senhor!
HORACIO
Não seria possivel fallar uma lingua mais intelligivel? É-o por certo, senhor.
HAMLET
Com que fim pronunciou o nome d'aquelle cavalheiro?
[139]
OSRICO
De Laerte?
HORACIO
Acabou-se-lhe o cabedal; ignora completamente o que ha de responder.
HAMLET
É verdade.
OSRICO
Sei que não ignora...
HAMLET
Queria que assim pensasse a meu respeito; e se assim fosse, fraco elogio para mim seria.
Continue agora.
OSRICO
Vossa alteza não ignora a superioridade de Laerte?
HAMLET
É o que não affirmo, com o receio de me comparar a elle. Para conhecer um homem a
fundo era necessario vestir a sua pelle.
OSRICO
Quero fallar da sua superioridade em manejar as armas; gosa da reputação de não ter
rival.
HAMLET
Quaes são as suas armas de predilecção?
OSRICO
Florete e adaga.
HAMLET
São só duas! prosiga.
OSRICO
O rei apostou seis bellos cavallos da melhor raça, contra seis espadas e seis adagas
francezas de Laerte, sem contar os cinturões, talabartes e tudo o mais. Tres dos
accessorios sobretudo são dignos da aposta e de um trabalho maravilhoso, no estylo
mesmo das armas.
HAMLET
Que chama accessorios?
[140]
HORACIO
Bem sabia eu que antes de terminar era infallivel algum reparo do principe.
OSRICO
Os accessorios, senhor, são os enfeites dos cintos e talabartes em que se suspendem as
espadas.
HAMLET
A expressão seria mais exacta se em vez de espada usassemos um canhão; sirvamo-nos
pois do termo cinto na generalidade. Prosiga. Seis bellos cavallos contra seis espadas e
seus pertences, incluindo tres cintos, obra prima da arte franceza; é pois a França contra
a Dinamarca. Mas qual é o motivo d'esta aposta?
OSRICO
O rei apostou que em doze golpes, Laerte não tocaria o principe senão tres vezes. Laerte
apostou que seriam nove em doze. A questão será promptamente decidida se vossa
alteza se dignar responder.
HAMLET
E se eu responder negativamente?
OSRICO
Quer dizer, se o principe convier em combater.
HAMLET
Senhor, vou agora passeiar n'esta sala; costumo todos os dias a esta hora, entregar-me a
esses exercicios: depois estou ás ordens do rei. Tragam floretes com a annuencia de
Laerte; e se o rei persistir no seu empenho far-lhe-hei ganhar a aposta se podér; no caso
contrario restam-me os golpes recebidos e a vergonha.
OSRICO
Deverei dar ao rei a sua resposta?
HAMLET
Disse-lhe o meu pensamento: o seu talento saberá completar a resposta.
OSRICO
Um servo dedicado de vossa alteza. (Sáe.)
[141]
HAMLET
Muito agradecido, obrigado (a Horacio); fez bem de o dizer elle mesmo, ninguem se
encarregava por certo de tal missão.
HORACIO
Finalmente, estamos sós!
HAMLET
Estou certo que ao collo da ama, antes de o sugar, elogiava a alvura do seu seio;
similhante a tantas pessoas da sua tempera, que são o encanto dos ignorantes, abraçam
as modas do dia, e revestem-se de um falso verniz de polidez, e, graças a essa mascara,
são escutados pelos sensatos; mas experimentem-os, são como bolas de sabão, que se
desvanecem ao menor sopro.
Entra UM SENHOR
O SENHOR
Senhor! o rei mandou o joven Osrico cumprimentar vossa alteza da sua parte, o qual lhe
disse que o principe esperava n'esta sala. El-rei envia-me para saber se é intenção de
vossa alteza combater já, ou adiar o combate.
HAMLET
Tomei já a minha resolução, e concorda com os desejos de sua magestade. Se Laerte
está prompto, tambem eu o estou; immediatamente, ou quando quizer, comtanto que me
sinta sempre tão bem disposto como agora o estou.
O SENHOR
Em breve chegarão o rei e a rainha, e toda a côrte.
HAMLET
Bemvindos sejam!
O SENHOR
É pedido da rainha que receba cordialmente Laerte, antes de dar principio á contenda.
HAMLET
É justo o seu conselho. (O senhor sáe.)
[142]
HORACIO
Receio que o principe perca a aposta.
HAMLET
Não creias tal; depois que elle partiu, tenho-me continuamente exercitado no jogo das
armas: com a vantagem concedida a victoria é certa. Se tu soubesse que dor sinto no
coração! Não importa.
HORACIO
Comtudo, senhor!
HAMLET
É uma loucura, uma leve apprehensão, que apenas poderia influenciar uma fraca
mulher.
HORACIO
Se sente alguma repugnancia no seu espirito, obedeça-lhe. Vou prevenil-os que não
venham, que o principe se sente indisposto.
HAMLET
De modo nenhum! Luctarei com os meus presentimentos; a Providencia tem já escripto
o meu destino. Se tenho de morrer, nada o evitará, forçoso é obedecer aos seus decretos;
que seja hoje ou ámanhã, estou prompto; tenho dito. Poisque o homem não é senhor do
seu destino, que importa que seja mais tarde ou mais cedo? Será o que Deus quizer.
Entram o REI, a RAINHA, LAERTE, OSRICO, SENHORES e CREADOS trazendo
floretes e luvas e uma mesa com frascos e taças
HAMLET (a Laerte)
Perdoe-me, se o offendi, mas perdoe-me como cavalheiro. Os que nos cercam, sabem-o,
e creio que tambem deve saber, que um terrivel desvairamento se apossou de mim. Se
alguma cousa fiz que podesse irritar o seu caracter e a sua honra e melindre, proclamo-o
bem alto: «Loucura!» Seria ainda Hamlet que offendeu Laerte? Nunca, nunca poderia
ser Hamlet. Então não era elle, e não sendo elle, como offenderia Hamlet a Laerte? É
claro, não era elle; renego todos esses actos. Quem foi então? a loucura. Sendo assim,
Hamlet abraça o offendido; o verdadeiro inimigo do desditoso Hamlet é a sua loucura.
Senhor, depois d'esta confissão, em que perante [143] todos renego toda a má intenção,
poderá ainda a sua generosidade condemnar-me? É como se inconscientemente
despedisse por cima de uma casa um dardo, e fosse ferir um irmão.
LAERTE
Meu coração está satisfeito; era elle que mais me excitava á vingança; mas no campo da
honra recuso-me a toda a conciliação, até que arbitros mais idosos e de provada
lealdade, me imponham, fundados em precedentes, uma sentença de paz, que ponha o
meu nome ao abrigo de toda a suspeita. Até então acceito a amisade que me offerece, e
nada farei em seu detrimento.
HAMLET
Acceito francamente essa promessa, e a lucta fraternal que vamos encetar. Venham os
floretes, comecemos.
LAERTE
Dêem-me um florete!
HAMLET
Vou ser o seu alvo, Laerte; ao pé da minha inexperiencia vae sobresaír a sua pericia,
como um astro brilhante em noite escura.
LAERTE
Zomba de mim?
HAMLET
Juro que não!
O REI
Dá-lhes floretes, Osrico, Primo Hamlet, conheces a aposta?
HAMLET
Perfeitamente, senhor; aposta demasiado vantajosa para o mais fraco.
O REI
Nada receio; já os conheço ambos, e poisque Hamlet é quem mais avantajado está, a
sorte está pelo nosso lado.
LAERTE (examinando um florete)
Este não, que é muito pesado; outro!
HAMLET
Este convem-me; os floretes são todos iguaes, não é verdade?
[144]
OSRICO
Sim, meu bom senhor. (Collocam-se.)
O REI
Ponham os frascos sobre a mesa. Se Hamlet o tocar a primeira e segunda vez, ou se elle
aparar o terceiro golpe, que as baterias rompam uma salva geral; beberei á saude de
Hamlet, e lançarei na taça uma perola mais preciosa que as que usavam nos seus
diademas os quatro reis meus predecessores. Venham as taças. Que os timbales
annunciem aos clarins, os clarins aos canhões, os canhões aos céus, os céus á terra que o
rei brinda por Hamlet. Vamos, senhores, podem começar, e vós juizes, attenção!
HAMLET
Em guarda!
LAERTE
Em guarda, principe! (Começam.)
HAMLET
Uma!
LAERTE
Não tocou.
HAMLET
Os juizes que decidam!
OSRICO
Tocou, não ha duvida.
LAERTE
Recomecemos.
O REI
Esperem, encham as taças. Hamlet, dou-te esta perola, brindo por ti. Offereçam-lhe a
taça. (Clarins e salvas.)
HAMLET
Prefiro acabar a contenda, esperem; depois beberei. Vamos, Laerte. Uma! que diz
agora?
LAERTE
Fui tocado, confesso-o.
O REI
Hamlet ganha.
[145]
A RAINHA
Estás fatigado, falta-te o fôlego. Limpa a fronte com o meu lenço. A rainha bebe á tua
victoria, Hamlet.
HAMLET
Minha senhora!
O REI
Não bebas, Gertrudes.
A RAINHA
Bebo, senhor, desculpe-me, desejo-o.
O REI (á parte)
Era a taça envenenada, já não ha remedio.
HAMLET
Ainda não bebo, mais tarde, senhora.
A RAINHA
Deixa-me limpar tua fronte, filho!
LAERTE (ao rei, á parte)
Senhor, agora verá.
O REI
Já não creio.
LAERTE (á parte)
E, comtudo, diz-me a consciencia que não.
HAMLET
Vamos, Laerte, a terceira prova; não me poupe, peço-lh'o; desenvolva toda a sua pericia,
não me trate como creança.
LAERTE
Que diz? em guarda, pois.
OSRICO
Ainda nada.
LAERTE
Agora toquei. (No encarniçado da lucta trocam os floretes, e Hamlet é ferido e fere
Laerte.)
O REI
Separem-nos, estão desesperados.
[146]
HAMLET
Não, recomecemos. (A rainha cáe)
OSRICO
Acudam á rainha; acudam!
HORACIO
Feridos ambos!! que é isto, senhor?
OSRICO
Como está Laerte?
LAERTE
Colhido no meu proprio laço, morro pela minha traição.
HAMLET
Que tem a rainha?
O REI
Desmaiou á vista do sangue.
A RAINHA
Não, não! a bebida, a bebida! meu Hamlet, a bebida! a bebida! envenenada... (Morre.)
HAMLET
Oh! infamia! fechem as portas, traição! quero conhecel-a.
LAERTE
Eu t'o digo, é esta: Hamlet, morres assassinado, nada te póde salvar; meia hora, quando
muito, te resta de vida, na tua mão ainda conservas a arma da traição afiada e
envenenada; tambem sou victima da minha perfidia. Escuta, já sinto a morte, tua mãe
envenenada... morro, Hamlet! o rei... só o rei culpado... (Desfallecendo.)
HAMLET
A ponta envenenada! veneno, cumpre o teu dever. (Fere o rei.)
OSRICO e SENHOR
Traição! traição!
O REI
Defendam-me, é apenas leve ferimento.
[147]
HAMLET
Bebe os restos d'esta taça, incestuoso assassino, damnado dinamarquez. Procura a
perola, achal-a-has seguindo minha mãe. (Vasa á força o resto da taça pela bôca do rei,
que cáe e morre.)
LAERTE (n'um ultimo alento de vida)
É justo o castigo; morre pelo veneno que preparáras. Hamlet, perdoemo-nos
mutuamente, e livres de qualquer reciproco remorso subam nossas almas abraçadas ao
céu. (Morre.)
HAMLET
Absolva-te o céu, como eu te perdôo; sigo-te, Laerte (a Horacio) morro, Horacio.
Rainha desgraçada, adeus. A vós todos, que ao ver esta catastrophe empallideceis,
mudos espectadores d'este drama, se tivesse tempo ainda, se esta ancia terrivel não m'o
vedasse, poderia dizer... agora, resignação. Eu morro, Horacio, tu viverás, justifica-me,
explica o meu odio aos que o ignoram.
HORACIO
Isso nunca! sou mais romano que dinamarquez, e n'esta taça ainda ha liquido.
HAMLET
Se és homem, dá-m'a; larga-a, por Deus, quero-a. Vive para revelar um tão infame
crime. Se alguma vez foste meu amigo, não apresses a tua felicidade celeste e
permanece n'este mundo odioso, conta a minha historia. (Ouve-se uma marcha) Que
rumor marcial é este?
HORACIO
É o jovem Fortimbraz, que regressa victorioso da Polonia, e que saúda os embaixadores
de Inglaterra com esta salva guerreira. (Ouvem-se tiros.)
HAMLET
Morro, Horacio, triumpha o veneno poderoso; nem já as noticias de Inglaterra me é
dado saber, mas predigo que Fortimbraz ha de reinar; morrendo, voto por elle; conta-lhe
mais ou menos os pormenores da causa da minha morte. O resto... é... silencio...
(Morre)
HORACIO
Que nobre alma! Adeus, meu adorado principe, os anjos do céu o embalem com os seus
canticos divinos. Mas porque é esta marcha? (Ouve-se uma marcha militar.)
[148]
Entram FORTIMBRAZ, os EMBAIXADORES a outras pessoas
FORTIMBRAZ
Que vejo?
HORACIO
Vae sabel-o. Desgraça ou prodigio, está patente a seus olhos.
FORTIMBRAZ
Que hecatombe, que horror! Oh! morte, que festim cruento preparavas tu, para precisar
de uma só vez tanto sangue real?
PRIMEIRO EMBAIXADOR
Que horrivel espectaculo! tarde chegâmos de Inglaterra. Já não nos póde ouvir aquelle
de cujas ordens annunciavamos o cumprimento, trazendo a nova da execução de
Rosencrantz e Guildenstern. Quem nol-o agradecerá agora?
HORACIO
Elle não, que os seus labios agora gelidos nunca o ordenaram. Mas, poisque vindes de
Inglaterra e de Polonia e presenceaes esta crise sangrenta, ordenae que bem alto, á vista
de todos, sejam collocados estes corpos, e eu lhes direi a causa d'estes factos, poisque a
ignoram. Então soarão aos seus ouvidos actos carnaes, incestos, sangue, expiações,
assassinios fortuitos, mortes causadas pela perfidia ou por força maior, e para desfecho
traições que feriram os proprios auctores; eis a minha narração, e juro que é verdade.
FORTIMBRAZ
Ouçâmol-o promptamente, convoquemos os nobres: dolorosamente acceito o meu novo
encargo, pois tenho sobre este reino direitos incontestaveis, que é meu dever reivindicar.
HORACIO
Missão tenho de lhe fallar a esse respeito, da parte d'aquelle que vivo teria tido os
suffragios do povo. Seja pois rapida a decisão, antes que os espiritos preplexos sejam
dominados por alguma conspiração ou engano que causem novas desgraças.
FORTIMBRAZ
Sejam por quatro capitães levados os restos mortaes de Hamlet: [149] façam-se-lhe
todas as honras militares. Se vivesse teria sido um grande rei. Quando passar, salvem os
canhões. Levem os cadaveres, esta vista é só propria dos campos de batalha; aqui causa
horror! Executem as minhas ordens, rompam as salvas de canhões e as descargas de
fuzilaria, e as marchas funebres. Morreu o que havia de ser rei de Dinamarca. (Desfilam
todos com os cadaveres: ouvem-se salvas de artilheria, descargas de fuzilaria e marchas
funebres. Cae o panno.)
Fim do quinto e ultimo acto
FIM
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